Esterilização de mãe de 8 no interior de São Paulo vira alvo de investigação

Órgãos trocam acusações sobre cirurgia em mulher após ação de promotor

Marcelo Toledo
Ribeirão Preto (SP)

O processo de esterilização de uma mãe de oito filhos de Mococa, no interior de São Paulo, virou alvo de investigação e troca de acusações entre órgãos públicos.

Presa desde novembro por tráfico de drogas, Janaina Aparecida Quirino, 36, tinha sete filhos quando a Promotoria abriu processo para submetê-la a uma laqueadura.​

Penitenciária feminina do estado de São Paulo, em visita da Folha, em 2010 - Marlene Bergamo/Folhapress

O procedimento para que ela não pudesse mais ter filhos ocorreu em 14 de fevereiro (quando nasceu seu oitavo filho), após uma decisão judicial de primeira instância.

A Defensoria diz que a mulher não foi ouvida no processo e que houve ilegalidade. O procedimento também foi contestado pela prefeitura local e por decisão em segunda instância do Tribunal de Justiça. O juiz do caso afirma que a mãe consentiu.

A cirurgia foi feita a partir de ação de maio de 2017 do promotor Frederico Liserre Barruffini. A condenação em primeira instância foi proferida pelo juiz Djalma Moreira Gomes Junior em outubro e gerou recurso da prefeitura.

O TJ reverteu a decisão em maio e extinguiu esse processo, mas era tarde, pois Janaína já tinha sido submetida à laqueadura três meses antes.

O desembargador Leonel Costa disse que houve violação da lei, pois é proibida “a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade”.

“O TJ reconheceu que [o pedido] foi descabido”, afirmou José Martini, chefe da assessoria jurídica da Prefeitura de Mococa.

O Ministério Público informou que a Corregedoria instaurou uma reclamação disciplinar para investigação do episódio. O TJ disse que a Corregedoria vai apurar a conduta do juiz no caso, que foi revelado pelo colunista da Folha Oscar Vilhena Vieira no último sábado (9).

Janaína está presa desde 11 de novembro, em regime fechado, na penitenciária feminina de Mogi Guaçu.

Para Paula Santana Machado Souza, coordenadora-auxiliar do núcleo especializado de promoção e defesa dos direitos da mulher da Defensoria de SP, todos os procedimentos relacionados a planejamento familiar são de livre decisão de homens e mulheres e, por isso, houve ilegalidade. 

“Não encontramos respaldo legal na legislação para o que foi feito, é inviável juridicamente, pois a lei fala o contrário. Laqueadura tem de ser via saúde e, se o pedido for negado, a pessoa pode entrar com ação. O que não pode é um terceiro ator, o Ministério Público, entrar com pedido.”

A defensora afirmou que Janaína assinou documento informando que concordava com a cirurgia, mas que isso ocorreu em um processo que nem deveria existir.

“Ela era acompanhada pela rede e não encontramos o porquê para ter sido judicializado. Inclusive não consta uma negativa do município em prestar esse atendimento. Mesmo tendo o suposto consentimento dela, não valida o processo, pois ele não deveria existir”, afirma.

Para a defensora, Janaína, em várias partes do processo, é vista “como uma mulher que não tem direito de ser mãe por ter histórico”. Ainda conforme a defensora, ela não teve defesa durante o processo e, agora, a Defensoria a procurará para definir quais medidas poderão ser tomadas. “Como ela foi considerada capaz, foi citada à época e não houve a procura por defensor, mesmo com o município pedindo que ela fosse ouvida no processo. Em nenhum momento foi ouvida pelo promotor ou juiz e acabou tendo processo sem defesa.”

No trâmite do processo, a advogada Rosângela de Assis, da prefeitura, disse ter citado que a ação apresentava violação de direitos. “Atuei nos direitos da prefeitura, mas no TJ argumentei que havia no meu entendimento violação de direitos humanos. Achei que era meu dever dizer.”

No processo, há laudos do Creas (centro de assistência social) e de uma psicóloga em que Janaína diz concordar com o procedimento, além de certidão do cartório informando que ela compareceu e concordava com a cirurgia.

CONSENSUAL

Por meio de um texto, o juiz Gomes Junior disse que a laqueadura foi consentida, sem que Janaína oferecesse resistência, e que documento que confirma o fato está no processo e “foi também subscrito pela diretora de serviços da Vara, na presença da psicóloga forense”.

Gomes Junior afirmou que, durante o trâmite da ação, Janaína foi ao cartório e “expressamente manifestou ciência e concordância com a pretensão de laqueadura”. “Cabe ressaltar que Janaína foi ouvida por diversas oportunidades, por mim, em audiências sobre seus filhos”, diz trecho do texto.

Segundo ele, a família é acompanhada há muitos anos e, dos oito filhos, três do primeiro casamento estão sob guarda do pai, um deles internado por dependência química. Dos outros cinco com o atual marido, três foram adotados, o bebê está em processo de adoção e uma adolescente encontra-se em abrigo social.

Ainda conforme o juiz, os filhos passaram pelo serviço de acolhimento local devido à negligência dos pais, “expondo-os a situações de risco, com o agravante de serem dependentes químicos e não aderirem ao tratamento proposto, apesar de várias intervenções da rede protetiva do município”.

A Folha procurou o promotor Barruffini, autor do pedido, mas não obteve contato. Ele está em férias, segundo funcionários.

O Ministério Público informou que a Corregedoria instaurou uma reclamação disciplinar para apurar o caso. Ainda conforme o órgão, o procedimento médico foi realizado com base em decisão judicial.

Colaborou Sarah Mota Resende 

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