Portugueses tentam salvar tradição das calçadas de pedra

Em Lisboa, escola se esforça para atrair futuros reparadores

Paulo Markun Ricardo Hiar
Lisboa e São Paulo

​Lisboa busca um caminho para salvar uma de suas marcas registradas: as calçadas de pedra, predominantemente brancas e feitas à mão. Presentes na cidade desde o século 19, correm risco de desaparecer por falta de profissionais dispostos a conservá-las —os chamados calceteiros.

Desde 1986, a Câmara Municipal, o equivalente local de prefeitura, mantém uma escola de calceteiros.

Só que o número de interessados em fazer o curso e trabalhar construindo ou mantendo as calçadas portuguesas diminuiu, embora os formados tenham emprego garantido, mesmo fora da administração pública.

Luisa Dornellas, 56, diretora do Departamento de Formação da Câmara Municipal, é otimista, apesar de tudo. 

Lembra que há um movimento de valorização desse tipo de calçamento, que a onda dos chamados descobrimentos espalhou pelo mundo.

Há calçadas do tipo no Brasil, em Angola, Macau e Timor Leste, mas também na Espanha, França, Bélgica, Venezuela, EUA e China. 

Mais: em março, os vereadores aprovaram a concessão de € 110 mil —quase R$ 485 mil— para a Associação Calçada Portuguesa aplicar na candidatura a patrimônio imaterial junto à Unesco. 

 

Luisa alonga-se ao enumerar as vantagens desse calçamento: é durável —há pisos com quase 200 anos—, sustentável —permite reaproveitar 90% das pedras ao ser reposto— embeleza os passeios e ajuda a garantir a esplendorosa luz de Lisboa. 

Isso sem falar na permeabilidade assegurada pelo espaçamento entre as pedras, que diminui os alagamentos. Ou na capacidade relativa de moldar-se à pressão causada pelas raízes das árvores.

Luisa não omite desvantagens: escorregadia pelo desgaste, inimiga dos saltos altos e de manutenção mais cara. 

Transtornos para os quais oferece saídas: aplicação de faixas de granito, mais rugoso, respeito ao plano de acessibilidade, que define onde deve e onde não deve ser aplicada a calçada portuguesa, e um trabalho permanente de promoção feito pela Câmara. 

Os saltos altos? Um problema anedótico, diz, apontando para a sandália de salto baixo e largo que está usando.

O calcário vem das pedreiras artesanais de Alqueidão da Serra, a 104 quilômetros de Lisboa. Já chega em pedaços pequenos, que ainda são aparelhados pelos calceteiros. Há ainda o basalto negro, mais raro, e o granito cinza.

Jorge Duarte, 55, ganhava a vida como pintor de automóveis até ficar desempregado, em 1986. Viu a notícia de um curso da recém-criada Escola de Calceteiros da Câmara de Lisboa e resolveu arriscar.

Passou no exame rigoroso e foi aluno dos mestres Pego Nunes, que já morreu, e Sebastião Golão, 85, hoje aposentado. 

Gostou do ofício, aprendeu todos os truques e hoje ensina novos profissionais na quinta do Conde dos Arcos, no bairro de Olivais, em Lisboa. 

Sonho de Jorge, que já deu cursos no Rio e em Belo Horizonte: deixar alguém em seu lugar daqui a dez anos, ao se aposentar. Tarefa difícil —dos 20 inscritos no curso atual, apenas cinco remanescem. 

“Gosto do que faço e gosto de ensinar. Mas estão-me a fugir as mãos. Os jovens não querem saber deste ofício, preferem as tecnologias.”

O repórter brinca dizendo que talvez seja o caso de construir um telemóvel (celular) de pedra. Jorge devolve a brincadeira entregando um pequeno coração de pedra que ele mesmo esculpiu. 

Quatro desses, reunidos pelas pontas como um trevo de quatro folhas, são a assinatura que Jorge deixa nas calçadas. 

Assinar assim seus trabalhos é norma entre os calceteiros. O trevo de Jorge está na imagem da fadista Amália Rodrigues que nasce no chão e sobe pela parede na rua de São Tomé, que ele fez junto ao artista de rua Vhils.

As primeiras calçadas do gênero causaram furor. Construídas por ordem do governador de Armas, Eusébio Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado, no final da primeira metade do século 19, seus desenhos em zigue-zague preto e branco levaram romarias de lisboetas ao Castelo de São Jorge. 

O sucesso garantiu recursos para pagar a mão de obra barata e segura dos prisioneiros, chamados de grilhetas. Em quatro meses e meio, em 1849, eles calcetaram os 8.712 m² do largo do Rossio. 

As linhas retas acabaram amaciadas e surgiu o Mar Largo —aquelas mesmas ondas em preto e branco que os brasileiros conheceriam mais tarde, em Copacabana, já com seu sentido invertido, ideia do paisagista Burle Marx.

As calçadas feitas à mão acabaram incorporando padrões e elementos decorativos tipicamente portugueses. Peixes, frutos e animais, mas também caravelas, estrelas, sereias, cordas, conchas. Mais recentemente, foi feito até um QR Code que oferece informações turísticas da cidade. 

Muito antes, no seculo 16, dom Manuel, o Venturoso, já cobrava da Câmara providências em relação ao calçamento da cidade. Em 4 de abril de 1499, ordenou que a rua Nova dos Mercadores fosse “calçada de pedra miúda.” 

No ano seguinte, especificou: que fosse pedra do Porto “porque a outra se danava da maneira que se via”. E definiu o preço: 50 réis a braça. 

Foi um auê para conseguir que os donos de lojas da rua pagassem pelo serviço. Muita gente reclamou isenção e dom Manuel acabou determinando que a Câmara cobrasse todos os devedores. 

Hoje, em Lisboa, as calçadas são de responsabilidade da Câmara e os munícipes não podem modificá-las, ao contrário do que ocorre em São Paulo, onde os proprietários dos imóveis é que devem cuidar delas, sob pena de multa. 

Em 1514, numa parada em sua jornada rumo à Jerusalém, o nobre flamengo Jan Taccoen, senhor de Zillebeke, impressionou-se com os “estranhos animais e gentes” que viu em Lisboa e anotou: “não existe senão uma boa rua, que é bem pavimentada.”

Entre os estranhos animais, é provável que Taccoen se referisse a cinco elefantes e um rinoceronte africano chamado Ganga, com que dom Manuel se exibia em cortejos do palácio real à Sé. 

O rinoceronte sustenta uma lenda digital, a de que as ordens de dom Manuel tivessem o intuito de garantir que o bicho não emporcalhasse os integrantes das comitivas reais ao pisotear as ruas enlameadas pelas chuvas de inverno.

Luisa Dornellas não confirma nem descarta a história, que muitos sites repetem. Para ela, vale tudo em favor das calçadas —de corações de pedra a rinocerontes.

Manutenção cara

Manter em boas condições uma área com pedras portuguesas demanda mais tempo e investimentos.

Segundo o urbanista e professor do Instituto Bixiga, Edimilson Peres Castilho, por ser um processo artesanal, a técnica é mais complexa do que outros tipos de pavimentação, criados nos últimos anos.

Ele defende que os locais de importância histórica tenham a estrutura de pedras preservadas pelo poder público, mas entende que é um processo difícil para os dias atuais.

“Ela é boa para paginação, tem durabilidade, mas a aplicação e manutenção são processos mais lentos, que exigem mão de obra especializada.” 

Segundo o urbanista, quando esse pavimento desgasta, nem sempre uma reforma resolve o problema, já que o desafio é fazer emendas duráveis.

Para Castilho, o uso de técnicas mais recentes, como a aplicação de resina, pode ser uma saída eficaz.

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