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Mauricio Fiore e Luis Fernando Tófoli

É preciso mais cuidado ao estimar o mercado da cracolândia

Que tipo de debate destacar o faturamento do tráfico na região pode sustentar?

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Embora seu fim já tenha assumido forma de promessa e mesmo de decretação, a cracolândia existe e, segundo o Levantamento das Cenas de Uso nas Capitais (Lecuca), realizado pela Unifesp, cerca de 1680 pessoas circulam diariamente por ela.

As informações disponíveis do estudo ainda não publicado indicam o empenho metodológico dos pesquisadores, já que se trata de uma população que desafia as ferramentas estatísticas.

De maneira geral, os dados concordam com os de outras pesquisas já realizadas na região, inclusive uma avaliação preliminar junto a beneficiários do extinto programa De Braços Abertos, que fizemos em 2015: uma população majoritariamente pobre, negra, de baixa escolaridade, com histórico de rompimentos de vínculos (sobretudo os familiares) e com longa permanência na região (cerca de 50% vivem ali há mais de cinco anos). 

As motivações para permanecerem por lá também coincidem: acesso ao crack e a recursos, proteção e redes de afeto.

Não foram esses dados nem os desafios que eles impõem que ganharam manchetes, mas a robustez do mercado de crack na região, que movimentaria mensalmente R$ 9,7 milhões. 

Esse valor suscitou, para muitos, uma pergunta: é possível riqueza dessa monta em um lugar associado à pobreza e à degradação? 

Sim, é possível. Mercados de psicoativos costumam ser superlativos. 

Isso pode ser mais precisamente medido no caso de drogas lícitas, como tabaco e álcool, por meio de dados comerciais. No caso de drogas ilícitas, as estimativas precisam de outras fontes de dados, e o Lecuca utilizou a quantidade estimada de usuários e os seus gastos com a substância.

No entanto, esse dado deve ser visto com cautela por três motivos principais:

1. É difícil para uma pessoa estimar seu gasto financeiro médio com uma droga. Por exemplo, você acha mais fácil dizer quantas xícaras de café toma por dia ou estimar seu gasto financeiro com essa bebida? Quem faz uso problemático de uma droga ilícita tem ainda mais dificuldade nessa conta, o que especulamos ser a explicação para o improvável gasto diário de pelo menos R$ 700 relatado por um entrevistado.

2. Cenas de uso público de drogas, como a cracolândia, têm importante movimentação econômica não monetária. Há escambo, e o preço e as formas de acesso ao crack variam, criando obstáculos para estimativas individuais.

3. O principal problema da estimativa está na metodologia que a sustentou. Embora o Lecuca tenha sido realizado com uma amostra de 240 pessoas, o dado sobre o gasto diário teve origem em 30 entrevistas selecionadas sem critério estatístico. 

Assim, ele não permite extrapolações com validade para toda a cracolândia. Em 2016, um levantamento do Datafolha utilizou uma amostragem mais confiável para estimar a média de gasto diário com crack e chegou a R$ 89, mas não houve extrapolação equivocada para estimação do mercado local.

Para além desses problemas, que tipo de debate destacar o faturamento do tráfico na região pode sustentar? Ainda há dúvida da lucratividade e da potência do mercado de drogas ilícitas? 

Por que, então, não contrapor o suposto faturamento da cracolândia ao de outros mercados da cidade, como os que fazem entrega domiciliar de cocaína por mais de R$ 100 o grama? 

Ainda: esses outros mercados constam do ranking dos relatórios policiais citados na reportagem que premiam a cracolândia como o “maior ponto de venda de entorpecentes do país”?

Parece-nos mais produtivo debater os dados do Lecuca e de outras pesquisas sobre a região à luz do planejamento de políticas públicas que não sejam criadas e encerradas por conta da disputa eleitoral. 

Por exemplo, discutir se o diagnóstico de “doentes” é válido e que impacto produz no cuidado e nas perspectivas de futuro de quem usa crack e vive na região. 

Chamar a atenção para valores estimados de forma pouco confiável e compará-los disparatadamente com o orçamento público alimenta, por outro lado, expectativas autoritárias sobre como lidar com a cracolândia. As mesmas que resultaram, nas duas últimas décadas, em políticas de tiro, porrada e bomba.

​Fiore é pesquisador do Cebrap e editor da Platô: drogas e políticas; Tófoli é professor de psiquiatria da Unicamp

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