Sou contra igreja que só vive de exploração e não ajuda o pobre, diz ex-traficante que virou pastor

Projeto fotográfico de Ian Cheibub retrata pluralidade evangélica no país

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O missionário Nilton Pereira caminha em uma favela antes de um culto em Niterói (RJ)
O missionário Nilton Pereira caminha em uma favela antes de um culto em Niterói (RJ) - Ian Cheibub
São Paulo

Gólgota, o nome da colina onde Jesus foi crucificado, vem do hebraico e pode ser traduzido como "caveira". Ao escolher esse nome para seu projeto sobre o evangelicalismo brasileiro, o fotógrafo Ian Cheibub mira o duplo sentido que a palavra adquire num país cada vez mais evangélico: "Um território que é máquina de morte, mas também um lugar de sacrifício, ressurreição e redefinição de significados".

O Brasil, que já beirou a unanimidade católica e hoje vê a fé evangélica avançar até uma provável maioria daqui a dez anos, está ressignificando o que é ser cristão. A Folha conversou com três pastores que Cheiub retratou para compreender melhor o pastoreio evangélico: a ex-candomblecista Norma Bastos, o ex-traficante Nilton Pereira e o evangélico de berço Silas Malafaia.

A Bíblia dimensiona a importância da função quando, no salmo 23, sublinha a onipotência divina: "O Senhor é meu pastor, nada me faltará".

No dia a dia das igrejas, o pastor serve de bússola para fiéis. Ele —ou ela, se a liderança incluir mulheres— prega a palavra de Deus e pode saciar fomes menos espirituais, como a provisão de cestas básicas para quem precisa.

A figura pastoral acabou sendo também associada, sobretudo por pessoas de fora da religião, a alguém que quer explorar uma massa incapaz de discernir a própria subserviência.

Um olhar mais próximo, contudo, revela uma teia social bem mais complexa, marcada por uma horizontalidade que pouco lembra a hierarquia rígida da Igreja Católica.

Há denominações mais estruturadas, com um líder que pode ser chamado de apóstolo, bispo, missionário ou pastor. Mas a malha evangélica é formada principalmente por igrejas pequenas. Qualquer um pode abrir um templo e pastorear.

Nilton Pereira, 42, missionário da Primeira Igreja Batista de Niterói

Sou o antigo traficante Zazá. Hoje sou o missionário Nilton.

Entrei na vida errada com 13 anos. Minha primeira droga foi o solvente. Depois veio a maconha. Com 15 anos, vim conhecer a cocaína. Aí já era.

Meus pais vieram do Nordeste, ambos analfabetos. Meu pai foi ser vendedor ambulante no Rio. Cresci no Morro do Palácio, na comunidade atrás do Museu de Arte Contemporânea [em Niterói, RJ]. Em 2011, por causa do vício em cocaína, roubei uma bicicleta na comunidade. Os traficantes não deixam roubar na favela. Me descobriram.

Tinha uma cova no alto do morro pronta pra me enterrar. Eu tomando pedrada com bloco de cimento, minha cabeça toda aberta. Defecava de tanta dor. Quando o traficante foi colocar a pistola na minha cabeça, senti um gelado nas costas. Creio que já era o espírito da morte.

Quando minha alma ia ser ceifada, clamei: Jesus, deixa eu ver meu filho crescer. Naquele momento eu creio que o céu se abriu. Deus nunca se atrasa. Um traficante falou: "Deixa ver quem vai morrer". Ele me conhecia e tinha uma patente maior do que a do soldado que ia me executar. Me liberaram. Só fiquei com aquele nome na mente: Jesus.

O diabo me levou pro tráfico de novo. Em 2014, fui baleado na laje. O tiro arrancou meu calcanhar pra fora. Eu pesava 47 kg, menos que um saco de cimento, de tanta cocaína que cheirava. Um dia eu peguei R$ 30, usei R$ 20 em droga, R$ 10 eu deixei em cima da bancada, que era pra comprar uma salsicha. Deu vontade de mais droga. Fiquei olhando pros R$ 10.

Foi quando dobrei o joelho. Comecei a chorar e pedir a Deus. A única coisa que me restava era um radinho velho que ninguém dava valor. Fiquei ouvindo a pregação do Evangelho por ele. Decidi ir nessa igreja, ficava a 1 km. Fui determinado a conhecer o Deus que tinha mudado a vida de outros traficantes amigos meus. Eles viviam com a família, com contrato de trabalho.

O pastor pediu para chegar próximo do altar. O negócio [pó] da droga começou a escorrer porque eu tava chorando, aquela coriza do nariz. Ajoelhei e pedi pra Deus mudar minha vida. Comecei a ir aos cultos. Vi que tava dando certo porque de dez [cápsulas de cocaína] fui diminuindo pra oito, pra seis, até o dia em que aquilo já não me satisfazia mais. Hoje faz dez anos que estou livre do vício.

Trabalho há cinco anos num condomínio, de faxineiro, e tenho um comerciozinho de relógios na comunidade. Pensei: "Vou passar essa fórmula para os amigos". Passei a ir nas bocas de fumo onde comprava droga. Nunca falando de homem, de pastor. Falava só de Bíblia.

Essa igreja de hoje eu sou contra. Que só vive de dinheiro, só vive de exploração e não ajuda o pobre. Nem pastor, nem padre, nem papa —ninguém é maior do que Cristo.

Até hoje boto caixa de som em quatro comunidades. Já tenho uns sete ex-traficantes que fazem a mesma coisa. A fórmula de Deus foi certinha, e hoje estou aqui, dando esse testemunho.

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