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Ensino remoto na rede pública de SP estreia com dúvidas e bagunça virtual

Responsáveis têm dificuldades com app e chat recebe comentários impróprios; sistema será aprimorado, diz secretário

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São Paulo

​O programa de ensino remoto do governo de São Paulo começou nesta segunda-feira (27) com o desafio nada modesto de garantir a aprendizagem de 3,5 milhões de alunos em meio à crise do coronavírus. Além do gigantismo da operação, a estreia foi marcada também por dúvidas, dificuldade no uso do aplicativo e uma transposição da indisciplina da sala de aula para o mundo virtual.

A programação de estudos conta com aulas exibidas por um aplicativo da Secretaria da Educação e por dois canais abertos de televisão ligados à Fundação Padre Anchieta, que administra a TV Cultura.

Alguns conteúdos são gravados no Centro de Mídias da Educação de São Paulo e outros são fornecidos pela Fundação Roberto Marinho e pela Secretaria de Educação do Amazonas, que há 13 anos deu início ao ensino a distância para populações que vivem em áreas isoladas. Há ainda a participação de youtubers especializados em educação, os chamados edutubers.

A presença de convidados externos, como o desenhista Mauricio de Sousa, foi elogiada por alunos ouvidos pela reportagem, mas a decisão da gestão João Doria (PSDB) de dar aulas padronizadas para uma rede com 3,5 milhões de estudantes, com diferentes trajetórias escolares e contextos socioeconômicos, foi alvo de críticas.

Em relação ao acesso, o principal problema na estreia foi no aplicativo para os anos iniciais do ensino fundamental, indisponível em celulares com sistema iOS. Parte dos dos professores da etapa também não conseguiu se logar —o que os impediu, por exemplo, de tirar dúvidas após a aula.

Não se sabe ainda quantos alunos de fato acompanharam os conteúdos —como ainda haveria aulas à noite, o número do dia ainda seria fechado. No final da tarde, o secretário da Educação, Rossieli Soares, relatou à Folha que algumas aulas haviam tido 140 mil visualizações, o que superou as expectativas da pasta. Ele estima que cerca de um milhão de alunos tenha acessado o conteúdo no primeiro dia, cerca de um terço da rede.

O acesso ao aplicativo da rede estadual é gratuito, ou seja, o estudante não precisa ter um pacote de dados para utilizá-lo no celular. Nem todos, no entanto, sabiam disso nesta segunda-feira. A falta de informação se soma às dificuldades generalizadas dos pais de conciliar o trabalho com os estudos dos filhos durante a pandemia.

Aluna da Educação de Jovens e Adultos (EJA), a costureira Joana Darc Alexandre, 29, decidiu só voltar a estudar quando retornarem as atividades presenciais. Ela não havia sido informada sobre a gratuidade do aplicativo —”deviam ter avisado, quem trabalha às vezes não consegue ver jornal”—, e mesmo as aulas na televisão era difícil de acompanhar, tendo que trabalhar e ajudar a filha de sete anos nas tarefas escolares.

“Tem aula na TV às 20h, mas, quando eu chego em casa, tenho que fazer a janta e cuidar da criança, não tem jeito”, diz. Ela avalia também que o modelo a distância não funciona para a EJA. “Quando a gente fica muito tempo afastada da escola, já é difícil retomar com um professor para tirar dúvida, imagina sem.”

Avó de uma aluna de sete anos da rede estadual, Marcia Araujo, 53, está a cargo de ajudar a neta nas atividades escolares durante o período de quarentena, mas também não havia recebido informação sobre aulas pela televisão ou por aplicativo nesta segunda-feira.

A escola estadual onde a garota estuda, na zona norte, tem colocado tarefas no perfil do Facebook. Como Marcia não tem computador, ela vai à associação de moradores da Brasilândia para imprimir o material.

Para quem conseguiu acessar o aplicativo, um dos assuntos mais comentados do dia foi o chat que acompanhava as aulas. A expectativa de parte dos alunos, assim como dos professores, era que a ferramenta fosse usada para tirar dúvidas sobre o conteúdo, mas ela acabou um fórum para qualquer tipo de manifestação, de oi e tchau a emojis de unicórnio, xingamentos, declarações de amor, e até “manda nuds (sic)".

“São muitas abordagens do tipo ‘bom dia’ e ‘boa tarde’, o tempo inteiro, não dá tempo de visualizar nenhuma pergunta”, diz o professor Álvaro Dias, de Mogi das Cruzes (Grande SP).

Ele também manifesta incômodo com a demanda na sua região para que compartilhasse seu número de celular para tirar dúvidas dos alunos em grupos de WahtsApp, e lembra que o diário de classe digital, sistema que serve para controle de frequência, vem apresentando instabilidade.

Para além do papo furado e das interações impertinentes, o que os diálogos nos chats das aulas mostram também é a vulnerabilidade de um sistema que tenta padronizar aulas para uma rede do tamanho e da heterogeneidade da de São Paulo.

Prints de tela enviados à reportagem mostram alunos com pedidos contraditórios ao professor. Alguns pedem que vá mais rápido, outros, que vá mais devagar. Muitas dúvidas também não são respondidas.

“Na sala de aula normal, dependendo da turma, o professor faz os ajustes necessários. Se o aluno não aprendeu divisão, você não ensina raiz quadrada. Se ele não viu o trovadorismo, você não vai falar do barroco. Mas o edutuber não sabe isso”, diz uma professora de Araraquara que não quis ser identificada por temer represálias.

Ela se queixa de que, com as aulas ministradas em massa por poucos professores, sente-se excluída do processo.

O secretário da Educação afirma que o aplicativo já está sendo aprimorado e que, nas próximas semanas, serão adicionadas ferramentas que permitirão uma participação maior dos docentes da rede. Entre elas estão os chats por turma, pelos quais os educadores terão uma interação mais próxima com seus estudantes, podendo responder dúvidas e enviar conteúdos.

Está previsto ainda um patrocínio para o uso do Google Classroom, ferramenta já utilizada por muitos colégios particulares que também permite uma maior interação.

Soares afirma ainda que o Centro de Mídias não é a única forma de contato possível, e que muitas escolas têm usado redes sociais para manter diálogo e fazer atividades com os alunos.

Ele diz que, pelo tamanho da rede e pela impossibilidade técnica de se transmitir aulas de mais de 100 mil professores diferentes, por ora as aulas estão tendo um nível médio de dificuldade, mas ressalta que o estado já pensa em um plano de recuperação para os alunos que ou não conseguiram assimilar todo o conteúdo ou que não assistiram às aulas remotas.

O secretário diz que, após a experiência desta segunda-feira, a pasta decidiu mudar o esquema do chat, que agora só será aberto em alguns momentos da aula, e não o tempo inteiro. Ele afirma que alguns termos já são automaticamente barrados, como palavrões e nomes de políticos, e que o aluno que infringir as regras de uso pode ser impedido de comentar.

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