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Procuradoria investiga estudo sem autorização com proxalutamida em hospital militar no RS

Médicos teriam administrado droga, 'nova cloroquina', sem aprovação do conselho de ética em pacientes com Covid-19

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São Paulo e Porto Alegre

Um estudo para avaliar o uso da proxalutamida como tratamento para casos hospitalizados de Covid-19 em um hospital militar no Rio Grande do Sul virou alvo de investigação do MPF (Ministério Público Federal).

A pesquisa, que não foi aprovada pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), buscava avaliar se o tratamento com a droga, que foi inicialmente testada contra câncer de próstata, era eficaz em pacientes hospitalizados graves com Covid.

O estudo foi coordenado pelo endocrinologista Flávio Cadegiani, do Instituto Corpometria —uma clínica de emagrecimento em Brasília (DF)— e pelo infectologista Ricardo Zimerman.

O MPF irá investigar se houve falha ética e outras irregularidades no estudo. O inquérito foi aberto no dia 13 de agosto, mas as informações sobre o caso só foram reveladas nesta terça (24) pelo repórter Pedro Nakamura, do portal de notícias Matinal.

De acordo com a reportagem, pelo menos 50 pessoas participaram do suposto ensaio no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre (HBMPA), zona sul de Porto Alegre.

O hospital é um prédio de fachada azul e bege, bem horizontal, com o nome em letras maiúsculas no alto; à frente, há árvores, com destaque para um ipê amarelo
Pacientes internados no Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre receberam remédio fabricado na China e tratado por Bolsonaro como a "nova cloroquina" - Osmar Nólibus / BM

Os voluntários da pesquisa teriam recebido diariamente comprimidos de 300 mg da droga experimental por duas semanas. Além de Porto Alegre, a pesquisa teria sido conduzida também em outros dois centros, um em Gramado (RS), e outro em Chapecó (SC), sem informação dos hospitais.

Segundo um relato feito ao site Matinal, não houve explicação de que se trataria de um estudo clínico de uma droga experimental. Foi entregue a uma paciente um termo de consentimento para assinar, mas sem acesso a uma cópia do documento. Os médicos tampouco buscaram o contato com ela após a alta hospitalar, ato imprescindível para o acompanhamento de uma pesquisa médica.

A proxalutamida é um bloqueador de hormônios masculinos (antiandrogênico), ainda em desenvolvimento pela farmacêutica chinesa Kintor. Ainda em testes, o medicamento não tem liberação de uso em nenhum lugar do mundo até o momento. A droga é tida como a "nova cloroquina" de Jair Bolsonaro e foi promovida nas redes sociais de um de deus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), em março.

No Brasil, há dois estudos da droga registrados no portal da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), um com início em janeiro de 2021 e outro em março, ambos com coordenação da fabricante, que solicitou a autorização para uso emergencial da droga.

Já os estudos coordenados por Cadegiani são quatro na plataforma ClinicalTrials.gov: dois no estado do Amazonas, sendo um deles desenvolvido em parceria com o Hospital Samel, em Manaus, e dois em Brasília, na sede do Instituto Corpometria, onde o médico trabalha. Não há nenhum registro para Rio Grande do Sul ou Santa Catarina.

No experimento realizado no hospital, os pacientes foram informados supostamente do uso "off-label" (fora da bula) da droga, o que não é o caso da proxalutamida, uma vez que ela não possui autorização para importação ou comercialização ou registro na Anvisa.

O uso fora da bula só pode ser autorizado para medicamentos que já possuem indicação para um tipo de tratamento e que se desejem testar para outro tipo de doença.

Em suas redes sociais, Cadegiani disse que em breve os resultados do estudo seriam divulgados. “Poucos sabiam, mas nosso estudo foi ampliado para a região Sul do Brasil. Em no máximo duas semanas, iremos anunciar os resultados da extensão do nosso ensaio clínico com proxalutamida em pacientes hospitalizados realizado nas cidades de Porto Alegre, Gramado e Chapecó”, escreveu o médico.

O médico endocrinologista Flávio Cadegiani comenta em suas redes sociais sobre a suposta pesquisa com a droga experimental proxalutamida para tratamento de Covid-19 em hospitais na região Sul do país
O médico endocrinologista Flávio Cadegiani comenta em suas redes sociais sobre a suposta pesquisa com a droga experimental proxalutamida para tratamento de Covid-19 em hospitais na região Sul do país - Divulgação/Twitter

De acordo com o Conep, não foi feita nenhuma solicitação de autorização para expansão da pesquisa com proxalutamida no Sul nem no órgão nacional, nem em comitês locais.

Cadegiani e Zimerman defendem a realização de sua pesquisa sem aprovação no comitê de ética em pesquisa com base em uma normativa publicada no dia 14 de abril de 2020 pelo Conep recomendando aos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) tratar com urgência todas as pesquisas relacionadas à Covid-19. A nota, porém, em nenhum momento fala sobre a realização de pesquisas sem aprovação do comitê, apenas para que os processos sejam mais rápidos.

Jorge Venâncio, coordenador do Conep, explica que a resolução não revoga nenhuma das resoluções já existentes sobre ética em pesquisa. "A centralização foi feita para acelerar a análise dos projetos, não para fazer a aprovação sem critérios e deixar as pessoas abandonadas, como foi a pesquisa no HBMPA", disse.

Para ele, o caso do hospital militar é grave porque "os pacientes foram abandonados, não entregaram sequer termo de consentimento", o que seria um indicativo grave de irregularidade.

Cadegiani, no entanto, diz que foi apresentado um projeto de pesquisa de estudo clínico de proxalutamida em pacientes hospitalizados ao sistema CEP/Conep e que os procedimentos foram adotados com amparo nas normas editadas pelo CNS (Conselho Nacional de Saúde), pelo Conep e pela Anvisa.

Em relação ao registro à Anvisa, Cadegiani afirma que se trata de "estudo clínico científico, e não regulatório, e somente os estudos para fins de registro regulatório são registrados na Anvisa". "Não há nem nunca houve qualquer problema na divulgação dos dados da pesquisa", afirma.

Ele diz, ainda, que o estudo atendeu a todos os requisitos da Anvisa para a realização de pesquisas científicas com humanos.

A procuradora da República Suzete Bragagnolo é responsável pelo inquérito civil no MPF. Ela disse à Folha que enviou na última semana ofícios à Anvisa, ao Conep e ao HBMPA, e que aguarda informações dos dois órgãos até o dia 31 de agosto.

A procuradora também notificou formalmente o Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers), que afirma ter tomado conhecimento do caso e que vai abrir uma sindicância para investigar as graves denúncias.

A investigação, segundo Bragagnolo, vai focar nos aspectos da pesquisa e se houve irregularidade do comitê ético, mas não irá apurar agora se houve intenção político-ideológica na condução do ensaio. O infectologista Ricardo Zimerman depôs na CPI da Covid por defender tratamento precoce durante a pandemia da Covid-19.

Em nota enviada após a publicação desta reportagem, a Anvisa esclarece que não foram solicitadas importações do medicamento proxalutamida para condução de pesquisa clínica no Brasil, mas sim importações na modalidade de remessa expressa, entre o segundo semestre de 2020 e a primeira metade de 2021, para o desenvolvimento de pesquisa científica, sem objetivo de registro do produto no país. As remessas foram localizadas no sistema no dia 25 de agosto.

"A modalidade de importação conhecida como remessa expressa permite a entrada de medicamentos no Brasil para desenvolvimento de pesquisa científica ou tecnológica envolvendo seres humanos." A agência esclare ainda que no pedido submetido, o importador "declarou que o medicamento não seria utilizado em pesquisas clínicas" e que tais importações necessitariam do medio de Licença de Importação.

A nota diz ainda que a "Anvisa avalia apenas pedidos de autorização para estudos clínicos com finalidade de registro do produto" e que "até o momento, aprovou apenas dois pedidos de estudo clínico, com fins regulatórios, para o medicamento proxalutamida, patrocinados pela empresa Suzhou Kintor Pharmaceuticals, sediada na China".

No caso de Cadegiani, outra pesquisa dele com proxalutamida já é alvo de apuração no Conep por ter apresentado uma proposta no momento de solicitação para o ensaio clínico e depois ter modificado os critérios de seleção —a conclusão da apuração deve ser feita nos próximos dias.

Cadegiani afirma, no entanto, que não houve absolutamente nenhuma troca na metodologia após o início do estudo. Questionado sobre porque a própria fabricante Kintor excluiu os dados deste estudo do pedido de aprovação feito à Anvisa, o médico diz que "a autorização foi para pacientes ambulatoriais, e o estudo em tela foi para pacientes hospitalizados".

Ele afirmou, ainda, que "todos os resultados são divulgados nos momentos próprios e os processos relativos a pesquisa correm de forma natural e devida".

"Importante ressaltar que queremos que os dados sejam reproduzidos. Acreditamos que outras pesquisas, como as que estão ocorrendo e irão ocorrer, têm que acontecer porque quando um achado é encontrado também por outros grupos, tal achado ganha muita força do ponto de vista de evidência científica."

O médico do HBMPA, major Christian Perin, disse à Folha que é apenas membro do corpo clínico do hospital e que questionamentos sobre o estudo deveriam ser dirigidos aos pesquisadores.

Depois, o hospital, que atende todos os conveniados ao Instituto de Previdência do Estado, incluindo brigadistas e familiares, respondeu à reportagem por meio de nota afirmando que "quaisquer outras informações serão respondidas pelo Departamento de Saúde no curso dos procedimentos instaurados pelo MPF e pelo próprio Comando" e que "em função desses procedimentos de investigação, a instituição irá aguardar suas conclusões para manifestação, após esclarecimento dos fatos”.

Além da irregularidade de não apresentar um registro no CEP/Conep, a suposta pesquisa também falha em não ter dado aos participantes todos os elementos para formar uma decisão livre e esclarecida da participação em um ensaio com droga experimental.

Tal formulário, explica Cláudio Stadnik, médico e pesquisador do Hospital Santa Casa de Porto Alegre, que também estuda o uso da proxalutamida para tratamento de Covid-19, é necessário para que os participantes de um estudo entendam todos os aspectos da pesquisa, inclusive se forem receber droga ou placebo.

A pesquisa coordenada por Stadnik não faz parte do grupo de Cadegiani e Zimerman —ele integra um consórcio internacional de cientistas que foi formado pelo fabricante da droga para estudar seu uso.

A reportagem tentou contato diversas vezes com Ricardo Zimerman, sem sucesso. Flávio Cadegiani respondeu às perguntas da reportagem por email.​


Leia a seguir a íntegra das respostas enviadas por Cadegiani à Folha.

Em sua rede social disse que em breve iria divulgar os resultados da expansão do estudo de proxalutamida em pacientes hospitalizados nas cidades de Porto Alegre, Gramado e Chapecó. A expansão dos locais de estudo foi aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa? Não se trata de expansão. Nós apresentamos um projeto de pesquisa, um protocolo de estudo clínico de proxalutamida em pacientes hospitalizados ao Sistema CEP/Conep, o qual, por se tratar de tratamento de Covid-19 e, em face da área temática, não é analisado por um Comitê de Ética em Pesquisa, é analisado diretamente pela Conep, posto que somente ele tem competência para proceder essa análise e emitir o parecer, sendo que essa é a única análise que pode ser feita quanto ao estudo em questão, nos termos da Resolução CNS 466/2012, subitem IX.4. 3, e nos termos do subitem 2.1.2 das “Orientações para condução de pesquisas e atividade dos CEP durante a pandemia provocada pelo coronavírus Sars-CoV-2 (Covid-19)”. A Conep, após proceder à análise ética do protocolo de pesquisa proferiu o parecer de aprovação de protocolo, único parecer possível para o estudo em tela.

Ressaltamos que os procedimentos são adotados com amparo nas normas editadas pelo CNS, pela Conep e pela Anvisa, uma vez que não há no Brasil nenhuma lei que disponha, que regule essa matéria, que determine o que deve ou não ser feito. Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei sobre esse assunto, mas ainda não foi aprovado. De qualquer sorte, procuramos de todas as formas atender às normativas infralegais editadas pelos citados órgãos e seguir o protocolo de pesquisa conforme aprovado pela Conep, através do competente parecer de aprovação emitido, o qual, no presente caso, não estabeleceu quais seriam os centros de pesquisa onde seriam realizadas as pesquisas, ou seja, seria a nível Brasil, ficando a cargo dos pesquisadores formar parcerias com os centros de pesquisa interessados (hospitais) que atendessem aos critérios da pesquisa. Lembre-se que vivenciamos uma grave pandemia e que o objetivo maior da pesquisa é salvar vidas.

Como foi feito o desenho amostral do estudo? Quantos participantes estão envolvidos, quantos são para receber o medicamento e quantos para receber placebo? O desenho do estudo é exatamente conforme aprovado. Os resultados serão divulgados no momento oportuno.

Na plataforma de ensaios clínicos da Anvisa não há registro de nenhum estudo no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina com proxalutamida, contendo apenas dois registros de estudos coordenados pela farmacêutica chinesa que fabrica o medicamento, a Kintor Pharmaceutics. Por que não consta o estudo do seu instituto ou da Applied Biology, da qual é também associado, na plataforma da Anvisa? Trata-se de estudo clínico científico, e não regulatório. Somente os estudos para fins de registro, regulatórios, são registrados na Anvisa.

Os estudos que ali constam, certamente estão sendo conduzidos para fins de registro, e, nesse caso, devem observar o contido na pela Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 9, de 20 de fevereiro de 2015.

Primeiramente, é necessário diferenciar pesquisa clínica de pesquisa científica, o que tem sido a base de todo “equívoco” que foi gerado por uma reportagem veiculada no dia de ontem.

A nossa pesquisa é científica e não possui caráter regulatório, ou seja, não são usadas para fins de registro de medicamentos no país.

No que diz respeito ao órgão de vigilância sanitária, para realização de pesquisas científicas envolvendo humanos, é necessária a anuência da Anvisa apenas para importação, conforme disposto na RDC 172/2017, requisito sempre atendido por nós.

De onde veio o interesse em testar a droga pra Covid, já que nenhum país do mundo tá testando — só o próprio fabricante da droga? Existem outros estudos com outras drogas da mesma classe terapêutica. Os estudos, desde os in vitro até os clínicos, estão no sentido da confirmação da nossa hipótese. Trata-se de uma teoria - a teoria antiandrogênica - bem estabelecida.

Os resultados apresentados por você e seus colaboradores, publicados na revista científica New Microbes New Infections (NMNI) se referem a qual CT (clinical trial)? Não se trata de um clinical trial.

A pesquisa conduzida em Manaus, cujo número de registro é NCT04446429 e que foi publicado na revista científica Frontiers in Medicine teve alguma troca de metodologia antes da conclusão dos resultados, o que pudesse indicar algum tipo de modificação do objeto de estudo original? A pesquisa conduzida em Manaus não tem número de registro NCT04446429 como também não foi a pesquisa que foi publicada na revista científica Frontiers in Medicine. O número de registro da pesquisa é NCT04728802.

De qualquer forma, não houve absolutamente nenhuma troca na metodologia após o início do estudo.

Novamente em relação ao estudo em Manaus, a própria fabricante Kintor Pharmaceutics excluiu os resultados da pesquisa em dossiê enviado à Anvisa para autorização do uso do medicamento. Se os resultados publicados foram positivos (91% de redução de hospitalização em homens com Covid-19), por que excluir os resultados do dossiê? Porque a autorização foi para pacientes ambulatoriais, e o estudo em tela foi para pacientes hospitalizados.

Houve algum motivo para suspeitar que os dados da pesquisa foram alterados? Não houve motivo algum. Talvez os resultados impressionantes.

Se não houve nenhum motivo para suspeita, se a pesquisa foi conduzida de maneira ética assim como a Proxa-South, porque não divulgar os resultados com os órgãos competentes e correr com o processo natural de pesquisa clínica? Todos os resultados são divulgados nos momentos próprios e os processos relativos a pesquisa correm de forma natural e devida. Tanto que os estudos fase 3 DDCM estão acontecendo em pacientes ambulatoriais (até pelo fato de este estudo ter ocorrido antes que de pacientes hospitalares), o que é o caminho natural.

Fizemos questão de não participarmos das pesquisas seguintes para manter independência dos resultados.

Importante ressaltar que queremos que os dados sejam reproduzidos. Acreditamos que outras pesquisas, como as que estão ocorrendo e que irão ocorrer, têm que acontecer porque quando um achado é encontrado também por outros grupos, tal achado ganha muita força do ponto de vista de evidência científica.

Se, nesse caso, está confiante de que não houve nenhum problema com o comitê de ética, por que não divulgar os dados de sua pesquisa, inclusive o número de participantes e a dosagem e os resultados encontrados, para toda a comunidade científica? Estes dados estão divulgados em pré-print. E os dados do Proxa-South serão divulgados em breve, assim que estiver completamente terminada a análise.

Não há e nem nunca houve qualquer problema na divulgação dos dados da pesquisa, ao contrário, chegou-se até a se divulgar dados parciais, para dar conhecimento à sociedade dos resultados prévios da pesquisa, quando os pesquisados entenderam necessário.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto dizia, erroneamente, que o major Christian Perin era diretor do HBMPA. O texto foi corrigido.

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