Rose luta por R$ 500 mil e manutenção de título mundial de boxe

Paulista enfrenta nesta sexta (15) a irlandesa Katie Taylor, valendo o título de três organizações

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Rose Volante, a primeira campeã mundial de boxe brasileira, durante treino em academia de Santos
Rose Volante, a primeira campeã mundial de boxe brasileira, durante treino em academia de Santos - Adriano Vizoni/Folhapress
Santos

"Filha, você está comendo de novo?"

Ao ouvir os passos da mãe se aproximando, Rose já tinha uma espécie de ritual programado. Escondia debaixo da cama o que estivesse à mão e respondia com convicção.

"Não comi nada, mãe".

Pesando 105 kg, ela tinha verdadeira compulsão por doces. As barras de chocolates eram as favoritas.

Também conta que era capaz de devorar uma torta de morango de uma só vez.

Dez anos depois, a boxeadora Rose Volante, 36, carrega 40 kg a menos no próprio corpo e vitórias improváveis. Venceu o sedentarismo, a obesidade, o preconceito e um inédito título mundial. Mas ela ainda quer mais.

"Me sinto, de verdade, uma privilegiada. Não tinha capacidade nenhuma como atleta", disse Rose à Folha.

Desde dezembro de 2017, quando ganhou por pontos em Jujuy, na Argentina, de Brenda Karen Carabajal, a paulista ostenta o título da OMB (Organização Mundial de Boxe) da categoria leve (até 61 kg). É a primeira mulher brasileira campeã mundial da modalidade.

No último ano, foram duas defesas de cinturão. Rose segue invicta, com um currículo de 14 lutas como profissional, e sonha nesta sexta (15) em entrar de vez para a história. Ela enfrenta a irlandesa Katie Taylor, na Filadélfia, nos Estados Unidos, com transmissão do card principal do evento a partir das 21h pelo SporTV 3. A luta vale o título de três organizações.

"Nada me foi dado. Agora quero perpetuar meu nome na história do boxe", afirmou.

Taylor é, de longe, o maior desafio de Rose no esporte. A adversária foi medalha de ouro em Londres-2012 e pentacampeã mundial amadora. Jamais perdeu nas 12 lutas como profissional.

"Ela disse que as lutas dela estavam entediantes. Estamos trabalhando muito para mudar isso".
Rose sonha alto, mas não se deslumbra. A simplicidade do principal nome nacional da modalidade –ao lado dos irmãos Yamaguchi e Esquiva Falcão– é de quem sabe que poderia não ter chegado tão longe.

Logo que entrou pela primeira vez para treinar no Centro Esportivo de Pirituba, academia-escola mantida pela Prefeitura de São Paulo, veio o primeiro "soco".

"O treinador me disse: 'você está vendo alguma mulher aqui?'", conta Rose.

Mesmo escanteada, decidiu permanecer. Passou a contar com a ajuda dos próprios alunos para os treinamentos. Perdeu 40 kg em apenas um ano e aceitou disputar a primeira competição como amadora, a Virada Esportiva.

Não conseguiu mais voltar para o curso de direito. "Ganhei por nocaute. Comecei a pensar em lutadores mais velhos como Evander Hollyfield e Alicia Ashley e falei: 'acho que dá para mim'", lembrou.

Foram alguns anos e títulos no amadorismo. Reserva na Olimpíada de Londres, em 2012, sofreu o baque de um doping no ano seguinte. A alternativa era recomeçar novamente, mudar para o boxe profissional.

A primeira luta foi em 3 de maio de 2014 contra Erika Karolina Araújo, vitória por nocaute, mas tudo era difícil na nova carreira.

Meses antes da inédita conquista na Argentina, Rose quase desistiu do boxe. Até 2017, quando acertou com a Memorial, treinava em horário atípico para um lutador profissional, das 23h à meia-noite, única brecha disponível na rotina entre as aulas particulares para ajudar a família.

"Vim fazer uma luta [contra Luana da Silva, em setembro de 2017] e disse para o [técnico] Felipe Moledas: vai ser a minha última", contou.

"No dia da pesagem dormi de cansaço até horas antes da luta. Só ganhei por pontos", explicou Rose.

Antes disso, ainda conciliava outras atividades. Trabalhou como atendente de madrugada em uma famosa rede de fast-food. "Saía às 6h, dormia no banco da academia até as 8h e começava o treino, as aulas."

 Pesagem oficial da luta válida pelo título mundial feminino do ano passado contra a panamenha Lourdes Borbua (à esq.)
Pesagem oficial da luta válida pelo título mundial feminino do ano passado contra a panamenha Lourdes Borbua (à esq.) - Bruno Santos/ Folhapress

Anos depois, outro episódio de preconceito. Foi substituir um amigo professor em uma aula de boxe. Levou horas para chegar ao lugar e, assim que entrou, viu o aluno lhe virar as costas e ir embora por ser mulher.

Mas tudo mudou para Rose. Ou quase tudo. Embora tenha novas condições, um contrato, uma empresa responsável por fornecer e cuidar de sua alimentação, um estafe com dois técnicos e outros profissionais, ela não abre mão de uma de suas alunas.

A atleta usa as brechas nas folgas para ir a São Paulo dar aulas à fisioterapeuta Cíntia Lessa, que sofreu um traumatismo craniano ainda criança, após cair de um banco, que acarretou em uma dupla hemiparesia (paralisia parcial de um dos lados do corpo).

"Tive que estudar bastante para usar o boxe para ajudá-la. Faço por amor, é minha única aluna", diz Rose.

A proximidade com Cintia criou na boxeadora o desejo de virar fisioterapeuta no futuro. Antes, porém, ela quer a maior conquista da carreira por um reconhecimento que ainda não chegou.

Após tantas superações, vencer no dia 15 parece um sonho mais do que possível.

Atleta terá bolsa recorde por defesa de título

A luta contra a irlandesa Katie Taylor também representa fora dos ringues o maior voo da vida da brasileira Rose Volante.

Rose receberá US$ 150 mil livres de impostos (aproximadamente R$ 580 mil). Taylor, por sua vez, pode lucrar até US$ 1 milhão (R$ 3,8 milhões) somados patrocínios pessoais e direitos de transmissão de televisão.

"Não uso o dinheiro das lutas, eu guardo o que recebo para depois. Me mantenho bem com o que tenho recebido. Deixo isso mais para frente", disse a brasileira.

A dura realidade de outrora, definitivamente, mudou. Até antes de se profissionalizar, Rose recebia menos de R$ 2 mil com o programa Bolsa Atleta. O sustento precisava ser complementado com aulas particulares de boxe, rifas e até trabalhos alternativos.

Os valores representam, também, uma conquista para a ala feminina da modalidade, mas ainda são pequenos perto de números liderados pelos principais atletas no masculino.

A irlandesa Katie Taylor, comemorando a medalha de ouro na Olimpíada de Londres, em 2012
A irlandesa Katie Taylor, comemorando a medalha de ouro na Olimpíada de Londres, em 2012 - Alberto Pizzoli/AFP

Em 2015, o americano Floyd Mayweather Jr. movimentou US$ 350 milhões (R$ 1,3 bilhão em valores atuais) contra o filipino Manny Pacquiao pela categoria meio-médio (até 66,6 kg). Chamada de "a luta do século", o confronto foi valorizado por mais de cinco anos de expectativa. Mayweather venceu por pontos e manteve a longa invencibilidade.

O mexicano Saul Canelo Álvarez, principal nome do boxe mundial, assinou contrato com a DAZN, plataforma de streaming britânica, para realizar 11 lutas por US$ 365 milhões de dólares (cerca de R$ 1,4 bilhão).

O mundo do boxe, no entanto, também registra outras realidades. O mexicano Leo Santa Cruz recebeu US$ 1 milhão (R$ 3,8 milhões) pela recente defesa do cinturão da Associação Mundial de Boxe, em fevereiro. O rival, o compatriota Rafael Rivera, levou apenas US$ 20 mil (aproximadamente R$ 76 mil).

"O boxe feminino está em uma crescente. Tem muitas mulheres treinando, procurando o esporte. Ainda falta apoio e patrocínio de um modo geral", explicou Rose.

Em janeiro, o Forja de Campeões, tradicional torneio para iniciantes, teve a primeira edição feminina. Criado pela Federação Paulista de Boxe em 1941, o troféu levou o nome de Rose Volante.

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