Já estava tudo inventado no futebol em 1945, diz escritor Martí Perarnau

Autor de livro recém-lançado sobre a história tática a partir do falso 9, espanhol fala sobre Guardiola, Torrent e futebol brasileiro

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São Paulo

"Leo, é o Pep. Tenho uma coisa muito importante para lhe mostrar. Venha agora", disse Guardiola a Lionel Messi às vésperas de um Real Madrid x Barcelona que seria disputado no Santiago Bernabéu, em 2009.

A conversa foi revelada por Martí Perarnau em um dos livros que escreveu sobre o catalão. O técnico queria mostrar ao jogador o que ele tinha identificado como uma oportunidade de surpreender o Real: utilizar o argentino como falso 9, às costas dos meio-campistas rivais.

O experimento não só deu certo (o Barcelona goleou por 6 a 2, em Madri) mas também revelou o que se tornaria a versão mais letal de Messi em sua carreira.

Esse episódio foi uma espécie de clique para Perarnau, que a partir dessa informação começou a estudar o papel do falso 9 ao longo da história. Em 2015, decidiu que escreveria um livro sobre o tema. "La evolución táctica del fútbol", publicado na Espanha no fim do ano passado (editora Córner), conta a evolução do jogo a partir do falso 9, em um período de análise que vai de 1863 a 1945.

Martí Perarnau, autor de "La evolución táctica del fútbol", que conta a história tática a partir do falso 9
Martí Perarnau, autor de "La evolución táctica del fútbol", que conta a história tática a partir do falso 9 - Córner/Divulgação

"O falso 9 não é uma posição, é uma função", diz Perarnau, que explica por que sua investigação se encerra no ano em que acaba a Segunda Guerra Mundial. "Quando estou terminando o capítulo do ano de 1945, sobre a Máquina do River, eu me dou conta de que todas as grandes decisões táticas e todos os grandes gestos técnicos já haviam sido inventados. Se vamos ao essencial, tudo já existe em 1945."

Em entrevista à Folha, Perarnau fala também sobre Pep Guardiola, os jogadores brasileiros e o trabalho de Domènec Torrent, de quem é muito próximo, no Flamengo em 2020.

"Assisti a todos os jogos [de Dome no Flamengo]. Os bons, os ruins, os desastrosos, acompanhei tudo. Eu não posso revelar coisas que não cabem a mim, mas seu trabalho foi muito obstaculizado. As condições foram muito negativas para que ele pudesse fazer algo positivo."

Quando surge a ideia do livro e por que a escolha do falso 9 como fio condutor dessa história? Surge em 2015, em Munique, nas muitas conversas no Bayern com Domènec Torrent, com Carles Planchart, com Lorenzo Buenaventura, com Pep Guardiola... Aparecem muitas questões sobre o jogo. Há um dia em que Pep forma o Bayern contra o Colonia em um 2-3-5. Jantando com ele, à noite, falávamos sobre a pirâmide de Cambridge, se ele conhecia ou não e como chegou a essa ideia. Ele não a conhecia do ponto de vista histórico, mas Juanma Lillo havia falado com ele sobre a pirâmide. E, treinando, surgiu para ele a ideia de atacar o Colonia dessa maneira. Como esse exemplo tivemos muitos outros. Falando com Pep, com Domènec Torrent, sobre como surgiu a defesa por zona, a marcação homem a homem, quem começou com o 4-2-4, esse tipo de pergunta. E essa é a origem, digamos, do livro. A tentativa de encontrar a resposta para todas essas perguntas que foram surgindo.

O tema do falso 9 é mais um recurso meu, porque percebo muito cedo que poderia cometer o erro, que não queria cometer, de escrever um livro de história. Queria um livro de tática, de como a tática foi se desenvolvendo. Então notei que poderia usar a figura provavelmente menos conhecida de todas, que é o falso 9. Não é uma figura historicamente muito clara.

Guardiola descobriu Messi como falso 9, e argentino viveu o melhor período de sua carreira
Guardiola descobriu Messi como falso 9, e argentino viveu o melhor período de sua carreira - Sergio Perez - 3.mai.11/Reuters

O que é o falso 9? Quando comecei a trabalhar, eu me dei conta de que ou teria de criar uma definição que servisse para entendê-lo ou confundiria todos e o livro não ajudaria a entender nada. E me ajudaram muito tanto Lillo como Guardiola, como Paco Seirul-lo, diretor de metodologia do Barcelona. O falso 9 é, fundamentalmente, um centroavante que recua de sua posição, e nesse recuo arrasta os defensores rivais para fora de sua zona. Se não os arrasta, causa uma grande confusão, uma grande dúvida neles, que pensam se saem ou não de sua zona. Situado nessa posição recuada, gera superioridade no centro do campo, joga como se fosse um meio-campista a mais e faz trabalhos gerais de organização do ataque. Além de provocar tudo isso, a confusão e a superioridade no centro, também é quem deve marcar os gols da equipe. Ou pelo menos que marque uma quantidade importante de gols. Se não faz gols, e nisso Guardiola insistiu muito, estamos falando de outro tipo de jogador. Um "mediapunta" ou como chamam em cada país. O falso 9 não é uma posição, é uma função.

Um meio-campista pode ser um falso 9? Pode ser. Não é necessário que o responsável pela função tenha como profissão ser um centroavante. Poderia ser um meio-campista. Mas que seja um marcador de gols. Houve jogadores que tiveram formação muito específica de centroavante e foram grandes falsos 9. [Matthias] Sindelaar, [Nándor] Hidegkuti, Pelé em alguns momentos, Raymond Kopa em alguns momentos, Di Stéfano, Cruyff. E houve falsos 9 que não tiveram essa formação tradicional de centroavante. Messi, por exemplo, começou como extremo. Não é um centroavante clássico, e como falso 9 foi extraordinário.

Uma história que você trouxe à luz em um de seus livros é a de quando Guardiola, às vésperas de um Real Madrid x Barcelona, percebe que Messi poderia causar dano atuando nessa zona entre zagueiros e meio-campistas. Isso foi uma espécie de clique para que você chegasse na ideia do livro? Sim, não tanto pelo falso 9, mas por um fenômeno que, no fundo, repetiu-se e neste novo livro está muito palpável, que é aquilo que um treinador pode chamar de "coincidência criativa". No futebol, acontecem processos criativos, tanto técnicos como táticos, que ao longo da história se repetem. Não porque quem os repete conhece toda a história, mas sim porque o ser humano, em condições muito diferentes de prática –gramado, bolas e chuteiras, por exemplo– chega a conclusões muito parecidas às de cem anos atrás. O próprio Guardiola disse que não inventou o falso 9, que viu Laudrup fazer essa função quando Cruyff era treinador do Barça. Eu mesmo vi Cruyff fazê-la como jogador. Pensava que o primeiro teria sido Nàndor Hidegkuti, da Hungria dos anos 1950, mas não. Sindelaar, na Áustria dos anos 1930, já o fazia. E seguindo por esse fio, você descobre que, já em 1910, José Piendibene fazia isso no Peñarol. Passaram-se cem anos, e Guardiola usou Messi no Bernabéu nessa função.

O período de investigação do seu livro começa em 1863 e termina em 1945, ano que marca o fim da Segunda Guerra Mundial. Por que esse recorte? Há uma razão principal para isso e várias razões secundárias. As razões secundárias são: final da Segunda Guerra, final da Máquina do River, um dos vários times históricos e que, além disso, incorpora as sementes do futebol total. E outra razão secundária é que a partir da década de 1950 surge a televisão e, com isso, o futebol é visível. Portanto, terminar em 1945 significa que o livro se ocupa do futebol invisível. Já a razão principal é que, quando estou terminando o capítulo do ano de 1945, sobre a Máquina do River, eu me dou conta de que todas as grandes decisões táticas e todos os grandes gestos técnicos já haviam sido inventados, e de uma maneira que podemos definir como primitiva. Se vamos ao essencial, que são os movimentos táticos, a distribuição dentro de um território, os gestos técnicos dos jogadores, tudo isso já existe em 1945. Então me parecia o ponto ideal para colocar um ponto final no livro.

José Piendibene jogou pelo Peñarol no início do século 20. Martí Perarnau o identifica como o primeiro falso 9
José Piendibene jogou pelo Peñarol no início do século 20; Martí Perarnau o identifica como o primeiro falso 9 - Wikimedia Commons

No início do futebol, há duas escolas fundamentais: a inglesa, com um jogo mais direto, e a escocesa, com um jogo de associações. Para onde vão essas duas escolas e quem são os mais influenciados diretamente por elas naquele princípio? Qualquer britânico, seja inglês ou escocês, que fosse ao Uruguai, à Argentina, ao Brasil ou à Rússia, levava consigo uma bola, chuteiras e regras que permitiam montar um time de marinheiros, de professores, para começar a jogar o futebol. Mas só entre eles no princípio, apenas entre britânicos. Depois que começam a jogar com as pessoas desses países, esses povos aplicaram seu caráter. Os brasileiros jogam de uma forma, os russos de outra. Basicamente, os ingleses conseguem implementar seu estilo na Espanha –exceto Barcelona– na França, na Alemanha, nos Países Baixos, na Rússia e na Itália. E os escoceses implementam seu estilo na Hungria, na Áustria, em Barcelona, na Baviera, no Uruguai, na Argentina e no Brasil em grande parte. Mas cada povo dá seu toque particular ao jogo.

Falando agora mais especificamente sobre Guardiola. No Manchester City, ele recuperou uma fórmula tática antiga do futebol, que é o 2-3-5, reinvertendo a pirâmide. Isso impressionou muita gente, mas no Bayern ele já havia testado isso, como você diz, então imagino que não lhe tenha causado surpresa... Não, realmente não. Neste momento em que vivemos, há muitos técnicos excepcionais, mas acredito que Guardiola se destaca por ser, provavelmente, o mais extremista em reinterpretar coisas. O que mais recicla coisas da história. Ele já vinha fazendo isso desde Munique, de maneira sistemática e estrutural. No Barça, ele não o faz de maneira estrutural. Em seus quatro anos no clube, muda coisas, mas faz mais por intuição. No primeiro ano, colocou Messi de falso 9, no segundo, contrata Ibrahimovic e não funciona. No ano seguinte, chega David Villa, e joga sem centroavante. E depois chega Cesc Fàbregas, e faz o 3-4-3, mas por intuição. Contudo, quando chega a Munique, ele me explica que antes de iniciar a temporada já está pensando em utilizar os laterais por dentro. Começa a fazer isso, até se transformar em algo sistemático no Bayern. Ele vai abrindo a cabeça para reinterpretar coisas. Quando chega ao Manchester City, essa já é sua marca pessoal. Agora mesmo, ele utiliza de maneira muito constante os três módulos históricos do início do século 20. Utiliza a pirâmide, no 2-3-5; utiliza o WM de [Herbert] Chapman, no 3-2-2-3; e utiliza o método italiano, no 2-3-2-3. Utiliza de acordo com o momento de cada partida, do rival, e os jogadores têm isso interiorizado sem precisar pensar muito a respeito.

Em suas passagens por Alemanha e Inglaterra, Guardiola incorporou coisas diferentes e hoje é um técnico mais completo. É também um treinador com mais dúvidas? Não sei a resposta. Creio que não. No Barcelona, ele tinha 37 anos. Hoje, tem 50. Passou por Alemanha e Inglaterra, amadureceu pessoalmente e como treinador. Creio que ele está se encaminhando para algo diferente, que é tentar dar aos seus jogadores ferramentas e padrões de jogo simples, mas ao mesmo tempo ricos, e não perturbá-los com um excesso de dúvidas. É possível que ele, em sua casa, continue com as mesmas dúvidas que tinha antes. Mas já não repassa isso à equipe. Antes ele transferia para o time todas essas dúvidas de como fazer os movimentos, etc. Agora aprendeu a ficar com as dúvidas em casa. Por isso seu time dá a impressão de estar mais maduro. É possível sentir seus jogadores mais serenos.

Existe muita confusão por aqui sobre a suposta relação que Guardiola tem com o futebol brasileiro. Já foi dito que ele é um admirador do Brasil de 1982, que aquela seleção o influenciou... Pep tem alguma referência do nosso futebol? Que tipo de relação tem com o Brasil? Sobre Pep, já foram ditas e escritas tantas coisas que às vezes algumas expressões foram magnificadas. Dá para entender o porquê, pois perguntam a Pep o que ele acha do treinador de determinada liga em determinado país e ele tem que ser cortês, dizer algumas palavras diplomáticas. A menos que seja alguém que ele conheça muito pessoalmente, como Luis Enrique, por exemplo. Ele o conhece e pode falar com propriedade. Mas sobre o campeão da liga tcheca é muito mais difícil. Então ele diz palavras educadas, e essas palavras são reinterpretadas como se Guardiola quisesse dirigir a seleção tcheca. Aí acontece o exagero.

Posso dar um testemunho pessoal, de uma refeição em Munique que fizemos com o então técnico da Venezuela, Noel Sanvicente. Ali, Pep diz claramente: "Adoro os pontas brasileiros". E ele tinha nesse momento o Douglas Costa, se não me engano isso foi em janeiro de 2016. O máximo apogeu de Douglas Costa no Bayern. Em sua primeira temporada no clube, a de 2015/2016, Douglas Costa faz uns primeiros seis meses estratosféricos, excepcionais, e um fim de temporada muito irregular. Mas, nesse momento, ele está no topo, titular indiscutível do Bayern ao ponto em que influencia a famosa pirâmide. Como ele tem que jogar sim ou sim como ponta direita ou ponta esquerda, pois é indiscutível dentro do time, isso obriga Robben ou Ribéry, às vezes os dois, a jogar por dentro, para que Douglas Costa e Kingsley Coman possam jogar como extremos. Nessa refeição, Pep diz que, como já sabia que ia para o Manchester City, pediu a Douglas que o recomendasse vários clones de jogadores como ele [risos]. "É o que mais me apaixona do futebol do Brasil", diz ele sobre os extremos. Ele gosta de ter brasileiros no time. Pep é claramente um admirador do futebolista brasileiro.

Martí, você tem um contato bastante próximo com Domènec Torrent, que trabalhou há pouco tempo no Brasil. O que você pôde observar de seu trabalho no Flamengo e o que puderam conversar a respeito? Assisti a todos os jogos. Os bons, os ruins, os desastrosos, acompanhei tudo. Eu não posso revelar coisas que não cabem a mim, mas seu trabalho foi muito obstaculizado. Foi muito difícil para ele trabalhar. Não só pelas dificuldades externas que conhecemos, como a Covid, jogar uma partida de Libertadores tendo jogadores infectados, mas houve uma série de outros problemas. Alguns deles conhecidos: a dificuldade do Campeonato Brasileiro, o calendário, poucos treinos, a dificuldade de ensinar aos jogadores uma forma de jogar, pois é necessário ter tempo. Guardiola, no Manchester City, teve um primeiro ano desastroso e precisou de tempo para que os jogadores assimilassem sua maneira de jogar. Se não há tempo, não conseguirão assimilar. E outros assuntos de caráter interno no Flamengo que dificultaram muito o seu trabalho. Sobre essas dificuldades, não sou ninguém para explicá-las, mas tenho conhecimento delas, elas existiram e foram obstáculos. E ele tinha uma missão muito difícil que era substituir Jorge Jesus, que conquistou cinco títulos. Sabemos que qualquer um que chegasse não poderia superar isso. E as condições foram muito negativas para que ele pudesse fazer algo positivo.

Uma das questões mais discutidas durante a passagem de Domènec pelo Brasil foi o jogo de posição. Acredita que esse modelo pode ter sucesso aqui, com o jogador brasileiro e suas particularidades? Não vejo por que não poderia ter êxito. Vamos imaginar que, com seis meses de Manchester City, depois de perder no Boxing Day por 4 a 1 para o Leicester, o clube tivesse demitido Guardiola. Estaríamos dizendo que o jogo de posição é impossível de praticar na Inglaterra. E encontraríamos argumentos. Foram os inventores do esporte, o jogo direto inglês é o que mais apaixona os torcedores, o jogo de posição nunca poderia ter êxito nas noites de vento em Stoke, os jogadores ingleses são incapazes de ter um mínimo de compreensão do espaço... O Manchester City decidiu seguir investindo naquele projeto e anos depois, se conseguirem ganhar esta Premier League, terão ganhado quatro ligas em cinco temporadas, quatro Copas da Liga, uma FA Cup, foram a uma final de Champions. E o jogo de posição na Inglaterra não só triunfou, mas vemos que o Arsenal tenta praticá-lo, o Brentford busca praticá-lo, o Brighton o pratica. É uma decisão de um comitê diretivo que decide que esse é o caminho e com ele terão sucesso.

Pelo que vi nos últimos anos, esse talvez seja o maior risco para o futebol brasileiro. Não é discutir se seus jogadores são capazes de fazer uma coisa ou outra, eles são extraordinários. Por acaso Fernandinho não é capaz? Casemiro, Neymar, Gabriel Jesus... Estamos cansados na Europa de ver os brasileiros em distintos modelos. O problema não é o jogador, mas se você vai demitir o técnico dentro de três meses e o próximo treinador será demitido dentro de três meses, não haverá nenhum modelo que se possa aplicar. Não haverá uma linha contínua.

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