Um
oceano de ressentimentos
BERNARDO
CARVALHO
Colunista da Folha
Não
é difícil despertar a ira do jornalista António
Mega Ferreira, presidente do conselho de administração
do parque da Expo 98, o empreendimento de maior projeção
internacional do país desde seu ingresso na União
Européia.
Basta mandar "um atorzinho da televisão brasileira"
a Lisboa e instruí-lo a declarar, no aeroporto, sem
nunca ter pisado em solo português antes, que adora
o país porque é descendente de portugueses e
acha a cidade maravilhosa.
"Não suporto que falem do que nem conhecem. Gostamos
do conceito do Brasil, mas não sei se gostamos muito
de nos confrontarmos com os brasileiros", diz Ferreira,
de seu escritório no alto de um prédio com vista
para o Tejo.
Nem a especialista em literatura portuguesa Leyla Perrone-Moisés,
autora de "Altas Literaturas", entre outros, escapou
ao confronto com os portugueses no aeroporto de Lisboa. Ainda
assim, faz questão de dizer que adora Portugal e acha
Lisboa maravilhosa -no seu caso, com conhecimento de causa.
"Portugal tem uma das maiores poesias do mundo e isso
para mim já bastava para ter uma imagem muito positiva
do país. Mas a relação dos portugueses
com os brasileiros mudou muito desde a entrada para a Comunidade
Européia. Isso com relação ao português
comum e, principalmente, ao português da polícia
(risos)", diz.
Há dois anos, Perrone-Moisés foi a um congresso
em Lisboa e acabou passando o diabo na alfândega: "Como
se ser brasileiro fosse ser suspeito. Quando depois a gente
conta essas experiências para os amigos portugueses,
eles ficam desolados. Mas está difícil".
Por outro lado, houve a contrapartida do brasileiro comum,
com a visão irônica do português: "Eles
se queixam muito disso. O Brasil sempre foi uma ex-colônia
sui generis. As outras colônias ficaram com rancor da
metrópole. Nós ficamos com a ironia, principalmente
por causa da imigração de portugueses muito
simples, que criou a imagem das piadas".
Eduardo Lourenço, considerado o maior ensaísta
português vivo, teve de aturar essas piadas quando era
jovem e dava aulas na Bahia. "Ele é um dos amigos
portugueses que ficaram com uma certa mágoa",
diz Perrone-Moisés.
Quando chegou ao Brasil pela primeira vez em 65, Arnaldo Saraiva,
professor de literatura brasileira da Universidade do Porto,
também se surpreendeu ao notar que "alguma inteligência
brasileira tinha indisfarçados ressentimentos em relação
a portugueses, fossem portugueses humildes como os imigrantes,
fosse em relação até a inteligência
portuguesa", diz.
Para Mega Ferreira, essa mágoa vem desde o século
19: "O país colonizado era muito maior que o país
colonizador. Há um paternalismo invertido da parte
dos brasileiros e um paternalismo invejoso por parte dos portugueses".
Nos últimos anos, essas diferenças foram acirradas
com a entrada de brasileiros em busca de trabalho no mercado
português, e Saraiva admite que os ressentimentos não
morreram nem vão morrer.
"A imigração de baixa qualidade (prostitutas,
repassadores de droga), além dos que vinham disputar
lugares de trabalho num país que começava a
ter algum problema de desemprego, trouxe certa perturbação
e em alguns lugares há uma imagem pejorativa do brasileiro,
que não existia em Portugal e não existe de
maneira geral", diz.
Para Jorge Couto, historiador da Universidade Clássica
de Lisboa, "sem o melhor conhecimento dos dois lados
não será possível ultrapassar os estereótipos,
quer da piada do português, que remete ao século
19, quer da visão desfocada do brasileiro que circula
em alguns meios portugueses".
A invasão das novelas brasileiras contribuiu em parte
para criar uma reação ao que alguns chegaram
a ver como imperialismo cultural. "É um subproduto
intelectual que narcotizou a população portuguesa
à hora do jantar, e portanto a certa altura acho que
passou a ter um efeito narcoléptico sobre a inteligência.
Mas não sou uma purista da língua. O discurso
português é muito mais abastardado pelos próprios
portugueses do que pela telenovela brasileira. O intelectual
português racional sabe perfeitamente que a cultura
brasileira tem cambiantes diversos. Não me ocorreria
de maneira nenhuma confundir um romance do João Ubaldo
ou a poesia do Carlos Drummond com um produto da Globo",
diz Clara Ferreira Alves, colunista do "Expresso".
A verdade é que a língua se tornou um obstáculo
nas tentativas de aproximação. Qualquer intelectual
português fica de cabelo em pé só de saber
que, ao publicar um livro no Brasil, as editoras locais cogitem
em "traduzi-lo". E que um romance como "Os
Cús do Judas", de Lobo Antunes, possa receber
o título de "Os Cafundós-do-Judas".
"As duas línguas estão muito separadas.
Para nós, a escrita brasileira é uma língua
exótica. A língua brasileira hoje está
muito mais penetrada por palavras americanas. O português
ficou para trás, como uma língua um pouco ancestral
e antiga, e o brasileiro foi evoluindo sozinho", diz
Ferreira Alves.
Nada mais compreensível, diz o historiador Luiz Felipe
de Alencastro, professor da Unicamp e pesquisador do Cebrap,
que os portugueses reajam. "Portugal é um dos
Estados mais antigos estruturados em torno de uma língua
e uma cultura homogêneas. Na medida em que o português
do Brasil ameace isso, eles têm uma certa resistência,
porque a língua é o elemento de unidade nacional.
Mas não acho que haja preconceito", diz.
Alencastro, cuja mulher e o filho moram em Portugal, tem uma
outra explicação para o afastamento entre os
dois países: "Desde o 25 de abril, Portugal deu
uma reorganização total na sua concepção
nacional do Estado e assumiu-se inteiramente como nação
européia. Há uma vocação européia
que Portugal está tendo pela primeira vez desde o século
15. A coisa da vocação ultramarina e tal acabou.
O essencial deles hoje é se afirmar como país
europeu dentro da União Européia. Daí
essa visão generalizante sobre a questão dos
descobrimentos, onde Portugal aparece como a vanguarda do
Ocidente".
Essa posição gera um outro dilema. "A europeização
pode ser para eles também uma hispanização,
porque o centro da Península Ibérica é
Madri. O meio de rebater isso é se ancorar um pouco
na cultura brasileira. É o que acontece na mídia,
com esse negócio de novela e música brasileira",
diz.
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