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No Brasil, nem tudo se come
RENATO SZTUTMAN
especial para a Folha
A idéia de que no Brasil se come de tudo está longe de ser
verdadeira. Afinal, quem nunca teve receio de provar uma vitamina
de manga com leite?
No sertão de Minas, é comum ouvir que chupar caju depois de comer
carne de porco pode trazer danos imprevisíveis. Muitos judeus, guiados
pelos códigos proibitivos da religião, preferem evitar alimentos
como o filé mignon e consomem apenas produtos “kasher”. A cozinha
de Salvador também revela restrições: cada comida é de um orixá
_e tem comida de que o orixá não gosta.
Muitos desrespeitam as recomendações e saem imunes. Isso quer dizer
que o tabu é ilógico, superstição ou ignorância?
Os antropólogos tentam ir além dessa suposição, buscando o que há
de racional por trás da aparente confusão. Todas as sociedades proíbem
certas classes de alimentos, e nisso há uma razão: classificá-los
em comestíveis e não-comestíveis significa classificar uma experiência
no mundo.
Essa é uma das teses de Claude Lévi-Strauss, em seu livro “O Totemismo
Hoje”, de 1962. Contrapõe-se sobretudo à teoria do norte-americano
Marvin Harris, que explica as proibições alimentares como respostas
culturais a problemas de adaptação ecológica. Entre as proibições
de que tratou Harris, em “Vacas, Porcos, Guerras e Bruxas”, está
a interdição da carne de porco entre os judeus.
Para ele, os porcos representavam nos tempos bíblicos um péssimo
negócio para os pastores nômades que habitavam os desertos, já que
demandavam água abundante, alimentação diária (ao contrário dos
ruminantes) e não se prestavam ao nomadismo.
A proibição agiria, nesse sentido, em represália ao desejo de consumir
uma carne cuja criação era incompatível com as atividades econômicas
do grupo.
O exemplo dos judeus é retomado por Mary Douglas, em “Pureza e Perigo”,
que busca no “Levítico” (Velho Testamento) bases simbólicas da proibição.
Sua conclusão é que a repulsa à carne de porco é parte da expressão
de um ideal de santidade e integridade que, em termos mais gerais,
fornece a base para a visão de mundo judaica.
Douglas une-se à perspectiva de Lévi-Strauss, autor da máxima de
que as espécies proibidas não são simplesmente boas “para comer”,
mas “boas para pensar”. A razão dessas proibições escaparia a uma
praticidade imediata.
Voltemos ao Brasil. Em Salvador (BA), os hospitais recebem diariamente
reclamações quanto aos serviços de cozinha _não porque a comida
seja de má qualidade, mas porque contraria dietas prescritas pelo
candomblé.
“Os interditos ou tabus alimentares permeiam toda a vida do candomblé”,
afirma Vivaldo da Costa Lima, professor emérito da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e especialista em antropologia da alimentação.
As interdições variam de acordo com o orixá que rege cada pessoa.
Cada orixá tem suas preferências e repulsas _desobedecê-las significa
tornar-se suscetível a sanções.
Um filho-de-santo deve seguir as prescrições da dieta de seu orixá.
Um filho de Oxalá, pai de todos os orixás, não come azeite-de-dendê.
O de Exu, malicioso e ambíguo, detesta óleo-de-coco. O de Oxóssi,
caçador que vive embrenhado nas matas, evita a carne de assanhaço,
coruja e urubu. E assim segue com os outros orixás.
Costa Lima alega que toda iniciação ao candomblé passa pelos tabus
alimentares. “As ‘quizilas’ constituem uma verdadeira ética para
a vida do iniciado”, acrescenta. É necessário seguir as regras para
ocupar um lugar marcado no terreiro e na sociedade de um modo geral.
Os tabus alimentares não se esgotam nas proibições, mas têm consequência
na criação gastronômica. O antropólogo avalia, por exemplo, que
“foi o candomblé, guardando zelosamente as formas e fórmulas da
‘cozinha dos deuses’, que forneceu a base de uma cozinha regional
da Bahia”.
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