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01/02/2002 - 12h31

Leia entrevista à Folha de filósofa que participa de Fórum Social

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MARIA BRANT
da Folha de S.Paulo

A filósofa indiana Vandana Shiva concedeu entrevista exclusiva à Folha de S.Paulo no dia 13 de maio de 2001 sobre o problema da alimentação no mundo e as biotecnologias.

Leia abaixo a íntegra da entrevista:

"Para filósofa indiana, indústrias pretendem dominar toda a cadeia alimentar

Hoje, para muitas pessoas, comer é um ato político. As implicações econômicas, sociais, ambientais e sanitárias dos atuais meios de produção e comercialização de alimentos -principalmente a biotecnologia- e as epidemias recentes afetando o gado europeu são as principais responsáveis pelo destaque que a questão ganhou nos últimos anos.

Pensando nessas implicações, diversos grupos e instituições têm surgido para tentar conter a concentração do controle da comida nas mãos de empresas privadas, além de garantir a qualidade do alimento e discutir o problema da segurança alimentar em seus dois sentidos ("food security", que diz respeito ao acesso da população à comida, e "food safety", que trata de seu caráter sanitário).

ONGs, intelectuais e ativistas políticos -cujo maior expoente talvez seja o agricultor francês José Bové- formam um grupo de contestadores da globalização que temem os efeitos sociais e econômicos do uso da biotecnologia.

Outro grupo que contesta a indústria biotecnológica é formado por ambientalistas, que defendem que o uso de transgênicos pode afetar o equilíbrio ecológico do planeta, com consequências imprevisíveis.

A física e filósofa indiana Vandana Shiva, diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência, Tecnologia e Ecologia, com sede em Nova Déli, funde a crítica econômica com a ambiental: chama a política de patentes de "biopirataria" e a proposta do transgênico Arroz Dourado, enriquecido com vitamina A, de "bobagem".

Ela faz parte de um grupo de intelectuais indianos -no qual também se inclui o Nobel de economia Amartya Sen- que conquistou nos últimos anos uma posição de destaque na crítica ao sistema econômico atual.

Descrita pelo jornal inglês "The Guardian" como "uma das cientistas mais radicais e proeminentes do mundo", Vandana foi elogiada até pelo príncipe Charles, em um seminário da BBC no ano passado. Seu livro "Biopirataria" chega às livrarias brasileiras amanhã dentro da coleção Zero à Esquerda, da editora Vozes (tel. 0/xx/11/3277-6266).

Leia a seguir a entrevista que Vandana deu à Folha, por telefone, de Lund (Suécia).

Folha - O que deveríamos discutir quando falamos em comida?
Vandana Shiva
- Deveríamos discutir a conservação da base de produtividade, ou seja: o solo, a água, a biodiversidade. Deveríamos falar sobre o sustento dos agricultores, a segurança ["security"] alimentar para os pobres, a segurança ["safety"] alimentar para todos. O mesmo sistema que destrói a Terra, destrói o direito dos pobres à comida. Hoje, os mais afetados pela fome são aqueles que produzem comida, mas não têm acesso a ela, que têm de vender todos os grãos para comprar produtos químicos para produzir esses mesmos grãos.

Folha - Como isso se relaciona com sua afirmação de que o patenteamento é a nova forma de colonialismo?
Vandana
- O controle pela semente já havia sido realizado com o uso de químicos na Revolução Verde. Hoje, com a introdução da semente híbrida e da semente patenteada, há uma colonização ainda mais profunda. A natureza da semente é se reproduzir, e todas as tecnologias e truques jurídicos do mundo estão sendo aplicados para impedir que a semente se reproduza e para fazer com que os agricultores não possam guardá-la, tendo de comprá-la todos os anos.

Folha - Estaríamos passando por uma corporativização da comida, com as grandes empresas tentando dominar toda a cadeia alimentar?
Vandana
- Elas definitivamente estão, por meio de três processos. Um deles é a aquisição da propriedade do primeiro elo da cadeia alimentar (a semente), usando as patentes. O segundo utiliza as novas ferramentas da engenharia genética para controlar o sistema alimentar, como a tecnologia "terminator" (que impede a semente de se reproduzir). De forma ainda pior, estão tentando controlar a cadeia alimentar pela contaminação. As corporações tentam criar uma lei que diz que, se elas poluírem as plantações e os campos de outras pessoas (pela polinização com suas sementes), não apenas elas não pagarão por isso como serão pagas. Estão inviabilizando todas as alternativas, seja a agricultura sustentável, seja a agricultura orgânica.

Folha - A sra. pode explicar o que é a dieta biodiversa que defende?
Vandana
- Como na Revolução Verde, hoje, na época da engenharia genética, nos dizem que produziremos mais comida. Mas, ao se calcular a área e a nutrição por hectare, um sistema biodiverso produz mais nutrição. O sistema de agricultura industrial acabou com a diversidade das plantações e a substituiu por monoculturas de arroz e trigo. Isso cria deficiências de nutrientes.

Como solução, querem nos oferecer o Arroz Dourado. Mas esse arroz só vai criar mais fome e mais desnutrição. Uma razão é o fato de que vai desviar nossos recursos já escassos da única forma viável de alimentar as pessoas, especialmente os pobres. Pesquisas de órgãos internacionais mostram que os únicos lugares em que deficiências sérias de vitamina A foram eliminadas são aqueles onde foram cultivadas sementes variadas.

Tudo o que temos de fazer é dar sementes de alimentos que são ricos em ferro e vitamina A e nos livramos dos dois piores problemas de desnutrição. Mas os recursos são dados a essas enormes corporações, e elas oferecem essa solução feudal para a desnutrição, que agrava o problema, porque cria outra receita de monocultura.

Estima-se que 100 g desse arroz terão 30 mg de vitamina A. Então, para suprir as necessidades de vitamina A, seria preciso comer 10 kg da bobagem que é esse arroz. Como ninguém come 10 kg de arroz, essa é na verdade uma receita para aumentar a deficiência da vitamina A. Verduras, abóboras e outros alimentos usados em nossas culturas podem prover de 10 mil mg a 14 mil mg.

Folha - O que é biopirataria?
Vandana
- A biopirataria é o modo atual de colonização. As corporações vão para o Terceiro Mundo, descobrem com que objetivo usamos nossa biodiversidade e depois alegam que inventaram essa forma de usá-la.

Folha - É possível reagir a isso?
Vandana
- Temos de mudar o sistema de direitos de propriedade intelectual, especialmente o sistema global, o Trips (Acordo sobre os Aspectos Comerciais dos Direitos de Propriedade Intelectual, na sigla em inglês), que dá poder às empresas para piratear o mundo e transformar o conhecimento dos outros em seu monopólio, ordenando que paguemos royalties sobre o que era nosso. As formas de vida e o conhecimento nativo deveriam estar fora da alçada do Trips, e a biopirataria deveria ser tratada como crime.

Folha - Como a sra. vê o futuro da agricultura?
Vandana
- O meu medo é que a crise criada pela agricultura industrial _a disseminação de febre aftosa, a doença da vaca louca e o temor em relação aos transgênicos- seja usada para diminuir ainda mais as opções de agricultura rural nativa e de pequena escala e deixar a agricultura totalmente nas mãos das corporações. Meu sonho é que tenhamos milhões de pequenos agricultores. E que os jovens nas ruas de Londres, Davos e Seattle, que estão buscando uma alternativa, procurem uma vida com mais significado, mais interação com outros membros da sociedade e com a natureza... Eu adoraria imaginar que, por meio da agricultura descentralizada e sistemas alimentares locais, possamos criar um futuro empolgante."

Leia mais:fóruns de Porto Alegre e NY
 

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