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01/01/2003 - 06h54

Como líder sindical, Lula já exibia o perfil conciliador

ARMANDO ANTENORE
da Folha de S.Paulo

Em julho de 1993, enquanto concedia uma entrevista autobiográfica, Luiz Inácio Lula da Silva resgatou da juventude um episódio aparentemente sem importância. Lembrou o caminho que fazia quando, de bicicleta, se deslocava do ABC para a Vila Carioca, na zona sul de São Paulo. "Eu não pegava a Estrada das Lágrimas. Pegava a marginal."

Com um olho na sociologia e outro na psicanálise, a jornalista Denise Paraná ouviu aquilo e logo percebeu que ali havia uma metáfora involuntária. O então presidente do PT evitara mesmo a Estrada das Lágrimas -não apenas durante os passeios juvenis, mas também em termos simbólicos. Contrariando a sorte dos milhões de nordestinos que se vêem sob o jugo da seca, superou a miséria, destacou-se num mar de trabalhadores braçais, perdeu a ingenuidade política e alcançou relevo dentro e fora do país.

O mais extraordinário, porém, é que logrou tamanha proeza justamente porque insistiu em seguir percurso muito próprio. Pegou, sim, uma trilha marginal e chega à Presidência da República carregando, no mínimo, três peculiaridades: não possui diploma universitário ou patente militar como todos os outros ocupantes do cargo; nunca desempenhou função no Executivo; tornou-se um dos principais nomes da esquerda brasileira sem passar pela formação marxista clássica.

À semelhança dos giros de bicicleta, que começavam no ABC paulista, a jornada incomum até o Planalto partiu igualmente daquela região -berço do que, duas décadas e meia atrás, se convencionou chamar "novo sindicalismo". Denise registrou a metáfora em "Lula, o Filho do Brasil". A tese de doutorado, que virou livro há seis anos, está retornando às lojas por iniciativa da Editora Fundação Perseu Abramo.

No mesmo estudo, o ex-torneiro mecânico já ressaltava o papel do ABC em sua trajetória. Falava, desta vez, às claras, sem figuras de linguagem: "Sou o fiel resultado do crescimento de minha categoria. Nem mais, nem menos". Em agosto de 2002, retomou a idéia: "Só existo e sou o Lula porque existiu o ABC". Usou o verbo no pretérito ("existiu"), mas poderia tê-lo conservado no presente.

O ABC, de certo modo, ainda existe. Durante a última campanha eleitoral, Lula serviu-se de estratégias que o notabilizaram nos tempos de militância operária. Empregou-as de novo ao longo da transição e dá mostras de que pretende levá-las também para o governo que inaugura hoje.

Entre 1975 e 1980, quando comandou o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, procurava agir como um conciliador -um líder que paira sobre as disputas pessoais, aproxima-se de pólos contrários, busca alianças e só decide depois de ouvir os diferentes lados em questão. Foi com espírito idêntico que, antes das eleições de outubro, abraçou o PL e aceitou o apoio de rivais históricos. É sob tal filosofia que, vencedor nas urnas, propõe um pacto social e pede para seus ministros se portarem sem personalismo. "Nada de "eu faço, eu quero". Agora, deve prevalecer a palavra 'nós'", avisa.

Sacola de frutas
Bombeiro ou motorista de jamanta? Criança, Lula pendia entre as duas alternativas toda vez que se imaginava numa profissão. O sonho de se tornar metalúrgico brotou mais tarde, em 1960, e por razões bem práticas. Tinha, à época, 15 anos.

Filho de lavradores, já deixara o casebre de barro e madeira no sítio Vargem Comprida, em Caetés, agreste pernambucano, onde nasceu. Já sacudira durante 13 dias sobre o caminhão "pau-de-arara" que o trouxe para o "Sul maravilha". Já vivera na Baixada Santista, concluíra a quinta série do primeiro grau e exercera diversos ofícios: vendedor de tapioca e amendoim, engraxate, office-boy, auxiliar de tinturaria.

Encontrava-se agora em São Paulo, na Vila Carioca. Morava perto da Vemag, uma fábrica de automóveis, e notou que os metalúrgicos da empresa gozavam "de regalias fantásticas". Eram benefícios hoje corriqueiros, mas raríssimos na ocasião: recebiam 13º salário e cestas de Natal, usavam uniforme ("um macacãozinho azul, bonito") e almoçavam em refeitórios. Suas mulheres sempre dispunham de dinheiro para ir à feira e retornavam com as sacolas cheias de frutas ("abacaxi, mamão, melancia, laranja").

"Aquilo me fascinava", contou Lula na entrevista de 1993. Não à toa, impôs-se a meta de, um dia, "ganhar a mesma grana que o cara da Vemag". Ainda em 1960, levado para um teste pela mãe (dona Lindu), acabou ingressando na Parafusos Marte, uma pequena fábrica do Ipiranga. Simultaneamente, frequentava um curso técnico do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), que equivalia ao ginásio. Formou-se, assim, torneiro mecânico.

Os Inácio da Silva, orgulhosos, tomaram o fato como uma façanha, semelhante à do jovem de classe média que se gradua numa faculdade concorrida. Nenhum dos outros sete filhos de dona Lindu conseguira, até então, nada parecido. Lula passou a receber pouco mais de um salário mínimo e virou o "cientista" da família.

Em 1964, trocou a Parafusos Marte pela Metalúrgica Independência, também no Ipiranga. Permaneceu 11 meses ali. Costumava encarar turnos de 12 horas.

Numa madrugada, o colega que operava uma prensa cochilou, deixou escapar o braço da máquina sobre a mão esquerda de Lula e lhe decepou o dedo mínimo. O acidente rendeu indenização de 350 mil cruzeiros, quantia que permitiu a compra de "uns móveis e um terreninho".

Da Independência, Lula migrou para a Fris-Moldu-Car, novamente no Ipiranga, de onde saiu logo. Foi despedido porque não quis trabalhar em um sábado.

Corria o ano de 1965. O país amargava uma profunda recessão, e Lula enfrentou enormes dificuldades para se recolocar no mercado. Ficou um semestre à deriva. Andava dez quilômetros por dia, de fábrica em fábrica, procurando ocupação. "Às vezes, parava no meio do caminho e chorava pra cacete."

Só arrumou emprego em 1966. A Villares, de São Bernardo, lhe abriu as portas. Quando o contrataram, trazia no bolso apenas uma moeda de 50 centavos.

Cachaça
"Uns pelegos, uns enganadores." No final da década de 60, Lula não media palavras para definir sindicalistas. Enxergava-os com péssimos olhos -como, aliás, boa parte do operariado daquele período. É que, por se manter excessivamente próximo do Estado, o sindicalismo de então priorizava as práticas assistenciais. Oferecia colônia de férias, barbeiro, serviços médicos e odontológicos, mas pouco brigava pelo aumento de salários ou pela melhora das condições de trabalho.

De tal maneira que Lula relutou muitíssimo quando, em 1968, um de seus irmãos, José Ferreira da Silva, o Frei Chico, indicou-o para completar a chapa da situação no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Não se tratava de nenhum cargo importante. Na diretoria, o "rapaz da Villares" iria ficar com uma mera suplência.

Soldador, Frei Chico já transitava pelo mundo sindical e queria que o irmão se politizasse -uma vez que, àquela altura, o "cientista" interessava-se mesmo por jogar pelada, ver novela e namorar. Os apelos se mostraram tão incisivos que Lula acabou cedendo.

Tomou posse no dia 24 de abril de 1969. Um mês depois, casou-se com a tecelã Maria de Lurdes, que morreria grávida em 1971, vítima de uma hepatite mal-diagnosticada. O bebê também não resistiria.

De início, Lula atuava sobretudo dentro da Villares. Capitaneou, por exemplo, o movimento pela instalação de um restaurante na empresa. Paralelamente, participava de reuniões com a diretoria do sindicato. "Presenciava os debates, os conchavos, as divergências. Ia escutando, aprendendo, pegando gosto. Política é como cachaça. Basta um gole e..."

Em 1972, após nova eleição, Lula passou a integrar o quadro efetivo de diretores. Licenciou-se na Villares e recebeu a tarefa de criar um departamento que cuidasse dos assuntos relativos à previdência social. Para implantá-lo, fez cursos sobre legislação trabalhista e fundo de garantia.

Na chefia do departamento, ganhou certa fama entre os operários. Primeiro, porque administrava uma área estratégica, que o obrigava a atender inúmeros associados todos os dias. Depois, porque tinha escolaridade superior à média da diretoria -o que o tornava referência intelectual. Finalmente, porque cultivava amizade com a oposição, mesmo pertencendo à ala situacionista (aqui, os atributos de negociador começavam a desabrochar).

Resultado: em 1975, elegeu-se presidente do sindicato. Abocanhou 92% dos votos. O ótimo desempenho nas urnas, entretanto, não o livrou da suspeita de que seria um líder fraco, manipulável.

A desconfiança se apoiava num par de constatações:

* Lula ainda não conquistara fluência verbal. Inseguro, tremia quando discursava de improviso (em 1973, frequentara aulas de oratória, sem grandes avanços).

* Paulo Vidal, que presidira a entidade nos seis anos anteriores, compunha a chapa vencedora como secretário-geral. Era alta, portanto, a chance de ele transformar Lula em fantoche e continuar mandando.

Cravo e ferradura
As previsões, porém, não se confirmaram. Em virtude de uma pendência que envolvia a Ford, o presidente e o secretário se desentenderam. Lula aproveitou a deixa para neutralizar Vidal. Proibiu-o de conceder entrevistas e se consolidou no poder.

Convicto de que o sindicato deveria abdicar definitivamente da inclinação pelega, buscou convertê-lo em "uma caixa de ressonância da categoria". "Se os operários reivindicarem isso ou aquilo, não vamos represá-los. Sairemos atrás do que desejam."

Iniciaram-se, então, as célebres (e frustradas) campanhas contra perdas salariais decorrentes da inflação. Os metalúrgicos -que integravam uma das indústrias mais beneficiadas pelo "milagre econômico" dos anos 70 - pediam reposição de 34,1% e condenavam duramente a política trabalhista do regime militar.

Lula, no entanto, evitava se associar a organizações de esquerda. Pregava a independência ideológica do sindicato. Como dizia, gostava de "dar uma no cravo e outra na ferradura". Criticava, com igual veemência, os abusos do capitalismo e os do socialismo.

Foi assim que, já desembaraçado na oratória, reelegeu-se em 1978. Obteve 98% dos votos. Para a posse, convidou a "tropa inimiga": representantes do Segundo Exército e o governador Paulo Egydio Martins. Mais uma vez, exibia apetite de negociador e tentava conciliar opostos.

Os militares -conforme declarou na época o próprio Egydio Martins, que compareceu à cerimônia- não rejeitavam Lula. Consideravam-no, até aquele momento, um mal menor.

O regime estava preparando a abertura e precisava conviver de maneira relativamente pacífica com vozes desarmônicas. Em tal cenário, melhor que florescessem líderes como o do ABC, sem apego à cartilha marxista. Pelo mesmo motivo, uma parcela do empresariado o julgava "um interlocutor de confiança" -e grupos de esquerda espalhavam o boato de que a CIA o cooptara.

"Não tô bom!"
Durante a segunda gestão, Lula aprofundou reformas que desencadeara na anterior. A mais notória: alterou bastante o modo de o sindicato se comunicar com os trabalhadores.

Transferiu as assembléias para a entrada das fábricas (em vez de esperar que o associado aparecesse nas reuniões internas) e simplificou a linguagem dos boletins. Enchia-os de quadrinhos, protagonizados por João Ferrador, uma espécie de Pato Donald dos peões. O personagem -que costumava advertir: "Hoje não tô bom!"- incorporava as dúvidas e demandas da categoria.

Em maio de 1978, uma greve estourou na Scania. Exigia-se reposição salarial. O sindicato não convocara o movimento, mas se apresentou para negociar com os patrões. A fagulha se alastrou e, em pouco tempo, 150 mil metalúrgicos do Estado cruzaram os braços.

Quase todo dia uma fábrica se rebelava -num turbilhão que se prolongou até dezembro. Foi a primeira manifestação do gênero desde o AI-5 (1968), e Lula se sobressaiu como principal porta-voz dos grevistas, que conseguiram fechar acordos significativos.

Em março de 1979, o ABC presenciou nova paralisação. Cerca de 80 mil metalúrgicos se concentraram no estádio da Vila Euclides (São Bernardo), reivindicando reajustes acima dos índices oficiais. O governo, desta vez, endureceu. Interveio no sindicato, os trabalhadores não alcançaram o que pretendiam, e a greve terminou após duas semanas.

Lula, agora célebre, já evidenciava uma guinada à esquerda -em parte, por influência de militantes estudantis que se infiltravam entre os operários. O "líder apolítico" não acreditava mais numa saída unicamente sindical para as mazelas do proletariado.

Em julho de 1978, durante congresso de petroleiros, sugeriu a fundação de um partido que defendesse "as bases, os assalariados". A idéia prosperou. Em fevereiro de 1980, nascia o PT.

Menos de dois meses depois, outra greve pipocava nas indústrias de São Bernardo. Estendeu-se por 41 dias, sob repressão ainda maior que a de 1979. Os grevistas não conquistaram nada e Lula, preso, acabou afastado do sindicato. Quando deixou o cárcere, assumiu a presidência do PT. Dali em diante, iria se distanciar do ABC -sem, no entanto, jamais perdê-lo de vista.

Veja também o especial Governo Lula
 

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