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05/01/2003 - 11h28

Artigo: O legado de FHC e o Brasil de Lula

TED GOERTZEL
da Folha de S.Paulo

A posse de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente do Brasil é um marco histórico. Pela primeira vez, um homem com origem na classe trabalhadora e inclinações políticas de esquerda assume o comando do maior país da América Latina.

A eleição de Lula e a transição suave de governo validam o sistema democrático brasileiro e dão à esquerda do Brasil, há muito frustrada, uma chance de colocar em prática as suas idéias.

Durante a campanha eleitoral, o PT de Lula prometeu romper com as políticas "neoliberais do Consenso de Washington", que predominaram na América Latina por pelo menos uma década. Se eles conseguirem êxito na implementação de um novo modelo econômico, será um precedente importante para a América Latina e para os países em desenvolvimento.

Mas obstáculos políticos e econômicos não deixam muita margem de manobra. Antes de assumir, Lula advertiu os brasileiros de que o primeiro ano de seu governo seria austero. Culpou a administração precedente por sobrecarregar o país com dívidas.

Mas culpar os líderes passados não resolve nada. Lula e o PT prometeram aos brasileiros que serão capazes de mudar o modelo econômico do país de forma a acelerar o crescimento, reduzir a desigualdade e melhorar a qualidade de vida. O que é provável que façam e que chances de sucesso eles têm?

Ainda que o PT tenha reputação como crítico da economia de mercado, isso é em larga medida coisa do passado. O partido conseguiu ganhar a eleição presidencial de 2002 deixando para trás seu passado radical e adotou posições políticas bastante semelhantes às da administração precedente.

Lula perdeu as disputas presidenciais de 1989, 1994 e 1998 em larga medida porque era radical demais para a maioria dos eleitores brasileiros. Em 1989, o vencedor foi Fernando Collor, jovem governador de Alagoas.

Collor seduziu o eleitorado com promessas, pronunciadas suavemente, de pôr fim à inflação e à corrupção. Mas sua política de combate à inflação fracassou, ele sofreu um processo de impeachment por corrupção e renunciou.

O poder foi então transferido a Itamar Franco, um político tradicional que não compreendia o problema da inflação. O PT tampouco dispunha de um plano para derrotar a inflação, a despeito de contar com dezenas de economistas e intelectuais brilhantes.

Desesperado, Franco pediu que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ministro das Relações Exteriores, assumisse a pasta da Fazenda. Para espanto de todos, Cardoso montou um plano que efetivamente pôs fim à hiperinflação.

O feito garantiu sua vitória eleitoral em 1994, frustrando Lula e a esquerda uma vez mais. Por volta de 1998, o plano antiinflacionário estava em crise e a esquerda acreditava que as políticas de FHC tinham fracassado, como as de Collor. Mas os eleitores estavam assustados demais para mudar o comando no meio de uma tempestade, e Cardoso surpreendeu a todos uma vez mais levando seu país a uma nova vitória sobre a crise.

Em 2002, Lula e o PT se viram forçados a admitir que muitas das políticas de Cardoso estavam funcionando melhor do que eles esperavam. Estavam cansados de perder, de modo que decidiram fazer as mudanças necessárias para uma vitória.
Adotaram uma plataforma próxima à do PSDB de Cardoso, Lula passou a usar ternos elegantes e a falar de maneira reconfortante. O mais importante é que ele prometeu honrar os compromissos que o Brasil assumira com o Fundo Monetário Internacional (FMI), entre os quais o controle dos gastos do governo e o pagamento em dia do serviço da dívida.

Ele participou de incontáveis reuniões com líderes empresariais, garantindo que comandaria a economia capitalista do Brasil melhor do que os capitalistas vinham fazendo.

Com essas mudanças, o PT passou a ocupar o mesmo espaço político do PSDB. Mas a história de Lula como líder sindical e as raízes do partido entre os ativistas da esquerda católica e entre os socialistas lhe propiciam maior credibilidade. Os militantes do PT têm uma notável tradição de compromisso para com o partido.

Os demais partidos brasileiros são em larga medida alianças temporárias de políticos independentes. Assim que o PT abandonou sua retórica radical, os eleitores o acolheram com alegria.

Ao mesmo tempo em que Lula dava segurança aos empresários e à classe média quanto à sua responsabilidade, apelava aos impulsos populistas com promessas de mudar o "modelo econômico" do país, reduzir a inflação e as taxas de juros, cortar o desemprego e estimular o crescimento.

Ele prometeu acabar com a fome, declarando que a aspiração de sua vida seria realizada quando cada brasileiro tivesse três refeições diárias. Lula prometeu reforçar a reforma agrária, distribuindo ainda mais terras que Cardoso, sem deixar de proteger o ambiente e de garantir os direitos dos povos indígenas brasileiros.

O principal oponente de Lula, José Serra, do PSDB, tentou colocar em destaque a natureza vaga das promessas de Lula e oferecer planos mais específicos. Mas os eleitores não queriam ouvir falar de dificuldades.

Estavam procurando por inspiração, empatia, alguém com uma visão positiva do futuro. Preferiram suspender suas dúvidas, esperando que de alguma maneira Lula se mostre capaz de cumprir suas promessas e confiantes de que fará o melhor.

A estratégia eleitoral do PT obteve sucesso retumbante. No segundo turno, em 27 de outubro, Lula obteve 61% dos votos. Seus partidários dançaram nas ruas de São Paulo. Mais importante foi o entusiasmo geral demonstrado pela sociedade.

Todos desejaram muita sorte a Lula. Fernando Henrique Cardoso, que não atacou Lula na campanha, disse que estava emocionado com a eleição de um líder da classe trabalhadora.

O júbilo em São Paulo se assemelhava ao de Caracas em 1998 e ao de Lima em 2001, quando maiorias esmagadoras elegeram o populista Hugo Chávez e o social-democrata Alejandro Toledo. Esses líderes prometeram mais do que poderiam cumprir.

Agora Chávez enfrenta tentativas de golpe e greves gerais, enquanto a aprovação de Toledo nas pesquisas de opinião caiu a 30%, ante 60% um ano atrás. Lula sabe que enfrenta risco similar. No fim da campanha, quando o entusiasmo popular estava no auge, ele começou a alertar que não seria capaz de fazer milagres e que seria preciso tempo para que suas políticas dessem frutos.

Os brasileiros darão tempo a Lula, mas um dia ele terá de cumprir as promessas de maior prosperidade, especialmente para os mais necessitados. Felizmente há diversas coisas trabalhando em seu favor. Seu partido é mais sofisticado e tem organização melhor do que a de qualquer agremiação latino-americana, e seus assessores são altamente competentes.

Embora o Brasil enfrente grandes desigualdades sociais e raciais, não há polarização política quanto a essas questões. A comunidade financeira internacional está ansiosa pelo sucesso do Brasil, e o FMI concedeu uma linha de crédito generosa.

Embora Lula não tenha maioria no Congresso, a oposição é responsável e está disposta a cooperar, ainda que o PT se tenha mostrado muito menos cooperativo em seus dias de oposição. Talvez o mais importante, o Brasil já concluiu reformas estruturais, componente essencial para o sucesso de Lula que jamais poderia ter sido realizado sob um presidente do PT.

Lula tem de agradecer ao seu rival, Fernando Henrique Cardoso, por muitas reformas difíceis e essenciais, que ora lhe dão a capacidade de governar efetivamente.

Além de pôr fim à hiperinflação e manter a disciplina fiscal e monetária em meio a algumas crises internacionais muito sérias, Cardos conseguiu que o Congresso aprovasse uma Lei de Responsabilidade Fiscal que controla severamente os gastos dos governos locais, estaduais e federal, um contraste importante com a vizinha Argentina.

Ao assumir dívidas estaduais e proteger a moeda, porém, ele elevou a dívida interna e levou as taxas de juros a um nível que limita as opções do país. Estatais ineficientes foram privatizadas, entre as quais bancos estaduais que alimentavam a inflação com empréstimos irresponsáveis aos governos dos Estados. A administração civil foi reduzida e modernizada.

O PT contestou ferozmente a maioria dessas reformas durante os oito anos do governo Cardoso. Atacou o presidente como "neoliberal" e insistiu que o país se sairia melhor com um modelo econômico que "tomasse por eixo o social", dando mais peso às necessidades humanas do que aos banqueiros e grandes empresas.

Argumentavam que o Brasil poderia ter crescido com mais rapidez durante os anos Cardoso se planejadores governamentais tivessem exercido mais controle sobre os interesses empresariais. A plataforma do PT assevera, otimisticamente, que o Brasil tem "vocação" para crescer à taxa de 7% ao ano, e culpa os "neoliberais" por não permitirem que isso ocorra.

Os brasileiros gostariam de acreditar que uma mudança de política econômica seria capaz de trazer de volta o crescimento econômico acelerado que o país experimentou na era do "milagre brasileiro", nos anos 60 e 70.

Foram as décadas de ditadura militar, e as Forças Armadas brasileiras acreditavam em forte orientação da economia pelo Estado, como o PT faz agora. De fato, a plataforma do PT expressa notável nostalgia pelas políticas econômicas da ditadura militar.

Mas não existem milagres na economia. O "milagre brasileiro" foi alimentado por empréstimos excessivos de petrodólares e por gastos inflacionários do governo. Isso gerou a hiperinflação e a "década perdida" dos anos 80. O Brasil não acumula a poupança interna necessária a sustentar um crescimento de 7% ao ano.

A única maneira de gerar crescimento rápido e sustentado seria um influxo maciço de investimento estrangeiro, exatamente o que Cardoso tentou fazer, sob as críticas virulentas do PT.

O Brasil já tentou planejamento governamental no passado, com resultados desastrosos. Os problemas de eletricidade em 2001 se devem em larga medida a planejamento falho de estrategistas governamentais que confiaram demais na energia hidrelétrica.

Nos anos 70, o governo decidiu converter boa parte da frota automobilística brasileira ao álcool etanol, antecipando uma crise mundial do petróleo. Mas os preços do petróleo caíram e causaram colapso do mercado de carros a álcool.

Nos anos 80, o Brasil protegeu o mercado interno de computadores contra a competição internacional. Com isso, o país perdeu a chance de se tornar um participante importante da indústria mundial de computadores.

Evidentemente, os empresários também cometem erros. Mas optar por um sistema de planejamento governamental é arriscado e gera o custo adicional dos funcionários públicos necessários a administrar os planos. Um sistema que dá poderes ampliados a servidores também cria novas oportunidades de corrupção.

Na era militar a corrupção era descontrolada, a despeito da suposta disciplina e patriotismo das Forças Armadas. O PT acredita que pode controlar a corrupção, e tem um bom histórico quanto a isso nos Estados e municípios que governou. Mas aumentar os poderes de funcionários do governo em um país com a cultura e a história do Brasil é sempre um risco.

Cardoso reduziu a inflação e modernizou a economia forçando as empresas brasileiras a concorrer com produtos importados e vendendo estatais ineficientes.

Isso teve um custo inevitável em termos de desemprego, já que os empregadores cortaram seus quadros. Mas era uma providência necessária para dar competitividade à economia brasileira, e os líderes do PT entendem o fato, embora se tenham oposto às medidas quando foram anunciadas.

O PT não quer voltar ao protecionismo. Propõe aumentar o nível de emprego reanimando as indústrias brasileiras de bens de consumo, por meio de crédito barato e incentivos. Mas os recursos necessários só estarão disponíveis caso a economia esteja crescendo rapidamente. Com tudo tão dependente do crescimento, o PT não pode fazer nada para alienar a comunidade empresarial brasileira e internacional.

Na campanha, Lula culpou Cardoso por tornar o país vulnerável demais ao capital especulativo, boa parte do qual saiu tão rápido quanto tinha chegado, em resposta às crises mundiais. Lula prometeu impor controles ao capital especulativo.

Essa é a posição dominante hoje, advogada pelo Chile e Cingapura, e até mesmo pelo FMI, de modo que alguns controles podem ser instituídos, no papel. Mas eles serão em larga medida simbólicos porque o mercado interno não é capaz de fornecer recursos suficientes para o crescimento que o país espera e precisa.

Se Lula quer cumprir suas promessas, precisará atrair investimento estrangeiro, como Cardoso. Não pode recusar investimentos simplesmente porque o dinheiro deixará o país se as condições mudarem.

Se Lula não conseguir reduzir o desemprego com rapidez suficiente, por meio do crescimento da economia, haverá forte pressão política para que empregos sejam preservados por meio da proteção do mercado brasileiro contra a concorrência estrangeira e pela contratação de mais funcionários pelas estatais.

Isso apelaria aos sentimentos nacionalistas e poderia ser facilmente justificado como retaliação pelas medidas protecionistas adotadas pelos EUA para seus mercados de aço, suco de laranja e outras commodities. Mas uma retomada do protecionismo representaria um revés para os esforços brasileiros de criar uma economia altamente produtiva e competitiva internacionalmente.

Um exemplo inicial do tipo de pressão que Lula terá de enfrentar vem de Itamar Franco. Como governador de Minas Gerais, decidiu que pagar a dívida do Estado era problemático demais. Os bancos podiam esperar. Ele preferia manter em dia os salários dos professores e policiais. Anunciou com orgulho sua recusa de pagar a dívida do Estado junto ao governo federal, o que deflagrou a crise financeira brasileira de 1999.

Cardoso encarou o desafio de Franco, forçou a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal e superou a crise. Ao fazê-lo, Cardoso pôs fim às esperanças presidenciais de Franco em 2002, de modo que o governador apoiou Lula nas eleições. Tão logo Lula foi eleito, Franco pediu que ele declarasse que os Estados não teriam de pagar suas dívidas para com o governo federal.

Os Estados brasileiros têm um longo histórico de acúmulo de dívidas, e sempre esperam que o governo federal opte por imprimir dinheiro para pagá-las. Isso permite que os Estados paguem seus funcionários, mas cria inflação que solapa o padrão de vida dos pobres. Lula, sabiamente, se recusou a fazer qualquer promessa desse tipo.

A melhor maneira de criar empregos seria desenvolver novas indústrias orientadas à exportação. Sob a teoria econômica do PT, o Estado deve selecionar os setores mais promissores e usar seus recursos para promovê-los.

Mas o Estado não dispõe de muitos recursos, e há muitas demandas a atender. Que setor os planejadores favoreceriam? A única sugestão na plataforma do PT é a tecnologia de computação.

É uma escolha óbvia para servir de ponta-de-lança ao desenvolvimento no século 21, mas o Brasil ainda não se recuperou da última tentativa de regulamentação estatal do setor de computadores. O legado daquela política fracassada persiste na forma de preços altos dos computadores montados no país com componentes importados.

Embora a alta tecnologia seja mais importante para o futuro do Brasil, o PT prefere falar sobre reforma agrária. A força dominante aqui é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

O movimento promoveu sua causa com eficiência, no Brasil e no exterior, mas a estratégia econômica que defende é falha. O problema é que subsidiar pequenos agricultores simplesmente custa caro demais.

A verdadeira luta não é pela terra, que está amplamente disponível, mas por subsídios. Sem eles, a reforma agrária serve apenas para criar favelas rurais. Países ricos da Europa e da América do Norte têm como arcar com subsídios a pequenos lavradores, mas os recursos brasileiros são muito mais limitados.

As fazendas de maior porte são muito mais produtivas, mas a esquerda anticapitalista as ataca como exploradoras. Houve disputas renhidas entre os proprietários rurais e os sem-terra que acreditam que têm o direito a receber terras e os subsídios necessários a explorá-las.

O governo Cardoso modernizou a burocracia da reforma agrária e acelerou consideravelmente o assentamento de famílias, a um custo considerável. Mas o MST espera que Lula faça mais.

Querem deixar a agricultura comercial de exportação e partir para pequenas fazendas e produção sustentável voltada ao mercado interno. Mas o Brasil simplesmente não pode cortar suas altamente lucrativas exportações de bens agrícolas.

Outra questão que terá de ser enfrentada rapidamente é a reforma da Previdência, um problema que Cardoso foi politicamente incapaz de resolver. Trata-se de uma questão difícil para o PT porque o conflito não opõe capitalistas ao proletariado, e sim contribuintes e funcionários públicos.

A Previdência brasileira oferece benefícios muito modestos para a sociedade em geral, mas muito generosos aos funcionários. O Brasil gasta mais com servidores públicos aposentados do que com saúde, educação e segurança pública combinadas.

As funcionárias públicas podem se aposentar a partir dos 48 anos, e os funcionários a partir dos 53, com direito a pensões equivalentes a 100% de seu último salário. A oposição de sindicatos de funcionários públicos bloqueou os esforços de reforma de Cardoso.

Lula fez da reforma da Previdência uma de suas prioridades iniciais, e seu histórico lhe dá credibilidade para levar o projeto adiante, se é que alguém será capaz de executar essa tarefa. Mas os funcionários públicos são um dos baluartes do PT, e eles esperam que Lula reponha as perdas que sofreram no governo Cardoso.

Lula prometeu manter os "direitos adquiridos" dos atuais servidores. Isso significa que, durante uma ou duas décadas mais, boa parte dos recursos necessários ao Brasil serão consumidos por funcionários públicos que se aposentam com salário integral no pico de sua produtividade.

A reforma tributária é outra questão importante que Lula tem a enfrentar, embora Cardoso tenha obtido progresso significativo na modernização da estrutura de impostos. A arrecadação tributária está em larga medida concentrada no governo federal, e os recursos são distribuídos de acordo com fórmulas estritas.

A distribuição de verbas federais eleva a receita das regiões mais pobres, mas o sistema tributário é regressivo, e o Imposto de Renda responde por parcela pequena das despesas do governo. O problema é que ninguém quer pagar mais impostos, de modo que só surgem reformas quando uma crise precipita uma sensação de urgência.

O PT naturalmente espera expandir e melhorar os programas sociais necessários. Os planos do partido são sensatos e bastante semelhantes aos programas que o Brasil tem em vigor nos últimos oito anos. Isso não é mau, porque o país obteve progresso impressionante nos indicadores sociais durante o governo Cardoso. Pobreza, fome e desigualdade diminuíram.

A posição brasileira no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU melhorou. As matrículas em todos os níveis de educação aumentaram, a expectativa de vida aumentou e a taxa de mortalidade por Aids caiu. Programas para proteger os indígenas e o meio ambiente amazônico foram vigorosamente expandidos.

Mas a violência vem se agravando, e a população insistirá em que essa questão tenha prioridade com relação a outros problemas sociais. As quadrilhas de traficantes estão fora de controle. O problema não se confina aos guetos.

Os líderes do narcotráfico conseguiram fechar o comércio do Rio por um dia, em protesto contra o confisco de seus celulares na prisão. Os sequestros se tornaram comuns, atingindo a classe trabalhadora e a classe média.

O PT dispõe de excelentes especialistas e compreende que nem todo o crime pode ser atribuído à pobreza e à desigualdade. Quer modernizar e melhorar as agências policiais. Mas a esquerda não tem idéias originais nessa área.

Os policiais são extremamente mal pagos, o que torna difícil suprimir a corrupção. Uma vez mais, o progresso depende de condições financeiras que só serão atingidas com o crescimento econômico.

É fácil fazer promessas em uma campanha eleitoral, especialmente com base na suposição de que um crescimento econômico anual de 7% gerará a receita para pagar por elas. Fazer escolhas difíceis sobre prioridades, levando em conta obstáculos fiscais realistas, é muito mais difícil.

Quando pressionado por detalhes específicos, nos debates de campanha, Lula costumava responder que convocaria todas as partes interessadas e conseguiria que chegassem a um acordo quanto a uma solução.

Ele é um líder trabalhista que sabe conduzir negociações, e não um advogado acostumado a redigir leis, e essa mudança de estilo talvez venha a ser útil. O PT sempre enfatizou a participação ativa dos cidadãos no processo decisório. Nas cidades e Estados onde o partido governou, muitas decisões foram tomadas por meio de um "orçamento participativo" no qual cada item é discutido extensamente em reuniões públicas.

Mas as pessoas se cansam de ir a reuniões. Discussões entre facções são especialmente incômodas. Esses problemas contribuíram para a surpreendente derrota do PT em seu mais importante baluarte, o Estado do Rio Grande do Sul.

A derrota nas eleições para o governo do Estado foi particularmente embaraçosa porque Porto Alegre é famosa como sede do Fórum Social Mundial, que defende idéias contrárias à globalização. A eleição estadual foi perdida devido a cisões internas no PT, ao cansaço de muitos cidadãos com reuniões intermináveis e com as poses ideológicas, e porque o Estado perdeu uma nova fábrica da Ford para a Bahia.

Os esquerdistas do PT se orgulham de ter resistido às exigências da Ford, mas a realidade é que, a despeito de sua retórica contrária à globalização, o governo do PT no Rio Grande do Sul dependia de multinacionais para alimentar o crescimento econômico do Estado. O Brasil simplesmente não pode alienar as multinacionais que estão estudando investimentos substanciais no país.

A esquerda do PT se manteve disciplinada o bastante para não atrair atenção para o contraste entre a retórica nacionalista de Lula e os compromissos econômicos que ele assumiu na campanha.

Muitas questões importantes foram deixadas sem solução, com o uso de terminologia que pode ser interpretada tanto à maneira socialista quanto à maneira social-democrata. Mas tão logo a eleição foi vencida, Lula teve de começar a tomar posição sobre diversos assuntos, mais explicitamente em suas escolhas para os postos-chaves do ministério.

Um dos primeiros anúncios foi a indicação de Henrique Meirelles, ex-presidente do BankBoston, para o Banco Central. Isso deixou claro que ele estava assumindo um compromisso de administração financeira responsável tal qual definida pelo FMI, Banco Mundial e outras entidades mundiais.

As objeções da esquerda do PT foram ouvidas, mas rejeitadas. As demais indicações de Lula foram balanceadas e bem recebidas, com a esquerda recebendo reconhecimento em áreas como o Meio Ambiente, mas mantida longe dos postos estratégicos na economia.

Tudo que Lula fez até agora confirma sua intenção de viver com as reformas de mercado que o Brasil adotou ao longo dos últimos 15 anos. Ele construiu uma coalizão de centro-esquerda, compartilhando o poder com outros partidos.

Planeja seguir o exemplo de Cardoso, mantendo o diálogo com a sociedade civil e modernizando os programas sociais, bem como recebendo de maneira favorável o investimento estrangeiro. Está até mesmo aberto a negociar um acordo de livre comércio com os EUA, política que criticou na campanha.

A situação do Brasil hoje se assemelha à do Chile nos anos 80, quando uma crise fez com que muitos sentissem que o modelo "neoliberal" havia fracassado. Mas o Chile decidiu preservar seu modelo e fazê-lo funcionar. Esse exemplo não escapou à atenção de Lula.

Lula fará um governo de continuidade, com mudanças modestas e bem ponderadas. Administrará com facilidade a decepção dos esquerdistas de seu partido, alguns dos quais podem abandonar o governo e aderir a grupos mais radicais ou fundar um novo partido.

A ameaça mais séria vem dos empresários tradicionais e dos servidores públicos. Eles usarão retórica nacionalista e socialista para defender a volta das políticas estatizantes e protecionistas que os beneficiavam, mas promoviam a inflação e reduziam o padrão de vida dos mais pobres. Se o país entrar em crise econômica, o que pode ocorrer por razões que estejam fora do controle de Lula, talvez seja difícil resistir às pressões.

Na oposição, o PT ajudou a manter o mito de que o "neoliberalismo" era responsável pelos problemas do país e que uma política industrial nacionalista seria preferível. Agora que está no poder, o partido precisa reconhecer que o país precisa de recursos que só podem vir da integração à economia mundial.

A coisa mais importante é usar bem esses recursos, e quanto a isso o PT tem vantagens importantes. Os petistas têm um histórico notável de dedicação ao interesse nacional. Talvez sejam capazes de inspirar um novo espírito, que dê mais valor a contribuir ao país do que ao benefício próprio.

Talvez alguns funcionários públicos optem voluntariamente por dar ao país o pleno benefício de sua experiência, em lugar de se aposentarem cedo. Talvez algumas mulheres se sintam eticamente obrigadas a trabalhar um número igual de anos para obter iguais benefícios.

Talvez haja menos sonegação fiscal, mais disposição de aceitar normas trabalhistas flexíveis e um maior apreço pelos empresários. O mais importante desfecho da eleição de 2002 não será a mudança radical. Talvez venha a ser um novo senso de dedicação a fazer com que o sistema funcione.

TED GOERTZEL, 59, é professor de sociologia na Universidade Rutgers, em Camdem, Nova Jersey. É autor de "Fernando Henrique Cardoso e a reconstrução da democracia no Brasil" (Saraiva). Tradução de Paulo Migliacci

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