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25/04/2004 - 08h53

500 anos depois, os guaranis mbyás ganham sua Bíblia

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SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo

O guarani mbyá Arlindo Tupã Veríssimo, 45, é um indígena às voltas com três deuses. Primeiro, tem o Tupã de seu segundo nome, a palavra "trovão" em tupi, que os missionários jesuítas do século 16 usavam para designar Deus de maneira que fossem compreendidos.

Depois tem Nhanderuete, o liberador da palavra original, segundo a tradição mbyá, que é um dialeto da língua guarani, do tronco lingüístico tupi. Por fim, há Deus, das religiões judaico-cristãs, representado na Bíblia. Pois esta acaba de chegar na aldeia de Arlindo, por obra da Sociedade Bíblica do Brasil.

A entidade lançou nesta semana a primeira edição completa no Brasil da Bíblia em uma língua indígena. Até então, havia traduções esparsas do Novo Testamento e de alguns livros do Velho Testamento. A aldeia escolhida para o lançamento foi a de Rio das Cobras, no município paranaense de Nova Laranjeira.

Nem o local nem a língua foram selecionados ao acaso. Entre os mais de 200 povos indígenas que habitam o Brasil, a maioria de tradição oral e sem escrita, os guaranis são dos mais aculturados e que mais próximos vivem dos centros urbanos.

E o trabalho de tradução teve participação de comissão composta por membros da aldeia dos mbyá, entre eles o próprio Arlindo, irmão do cacique. "Muita gente se interessava pela Bíblia, mas não conseguia ler", afirma ele, que se diz evangélico.

Desejo do povo

O desejo do próprio povo mbyá também é citado por Robert Dooley, consultor da Sociedade Internacional de Lingüística, que integrou a equipe de tradução. "Acreditamos que cada grupo tem o direito de ter a palavra de Deus na sua língua. Quando as pessoas a querem mesmo, quem pode negar a elas?"

Claro que o lançamento suscitou polêmica que vem desde que Anchieta (1533-97) escrevia suas peças e poemas de fundo religioso em tupi e os usava para catequizar indígenas que encontrou em São Vicente e São Paulo.

"A escrita, que foi introduzida nas culturas indígenas pelos missionários cristãos com o objetivo explícito da conversão, quer continuar cumprindo essa sua função", dispara a antropóloga Maria Inês Ladeira, coordenadora do programa guarani do Centro de Trabalho Indigenista.

"No caso da Bíblia, de capa preta e papel-bíblia, o objetivo fica evidente", continua. "Você já imagina o pastor indígena com o livro na mão, com uma performance dos mecanismos de conversão dos pastores, desconsiderando as cosmologias indígenas e suas religiões."

A Sociedade Bíblica, criada em 1948 principalmente por igrejas evangélicas, defende-se. "A crítica pode ser feita e às vezes é até justa, pois os cristãos erraram, e muito, ao longo da história", começa Erni Seibert, diretor do Museu da Bíblia da entidade. "Mas é preciso limite. O fato de existirem terroristas islâmicos, por exemplo, não quer dizer que o islamismo seja terrorista."

Alfabetização

Além disso, segundo Seibert, que é professor de teologia e pastor luterano, um dos objetivos da publicação é a alfabetização dos mbyás. "Uma vez registrada a escrita, dá para alfabetizar a nova geração dentro da língua dela", acredita. "Isso mantém a cultura, desperta a criação da produção literária, estimula o registro das experiências."

Nem mesmo entre os religiosos há consenso. "Tenho muitas reservas sobre a simples tradução da Bíblia, embora seja católico", diz o padre Bartomeu Meliá, pesquisador de etnoistória e considerado um dos maiores especialistas do mundo em guarani. "O trabalho lingüístico com esse povo poderia se fazer a partir das próprias tradições deles, aí sim teríamos a sua língua."

Se realimenta debates, de quebra o lançamento acrescenta um novo capítulo à guerra surda que trava a Igreja Católica com as religiões evangélicas, para as quais vem perdendo terreno no Brasil desde o começo dos anos 70.

Na região de Rio das Cobras, que abriga cerca de 600 guaranis mbyás, os índios evangélicos são minoria --mas quase não há católicos. Segundo relatos de locais, os pastores que lá aparecem são na maioria norte-americanos e da seita batista.

O fato é que o mbyá Arlindo Tupã Veríssimo já tem uma Bíblia para carregar debaixo do braço. Acreditar em Deus é bem mais complexo. "Agora, no momento, como eu me sinto especialmente, existe Deus, que é acima de todo o mundo, de Tupã, do Sol e de Nhanderuete."
 

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