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09/11/2003 - 07h25

A dúvida sobre Avogadro

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MARCUS VINICIUS MARINHO
free-lance para a Folha de S.Paulo

A contribuição mais conhecida do italiano Lorenzo Romano Amedeo Carlo Avogadro (1776-1856), conde de Quaregna e Cerreto, um advogado que se tornou físico perto dos 30 anos de idade, aconteceu depois de sua morte.

Entre outras obras em vida, Avogadro foi o primeiro a publicar, em 1811, a idéia de que os elementos químicos poderiam existir como moléculas --uma palavra latina (utilizada até então indiscriminadamente) que ele adotou para sua hipótese, que explicava por que misturar um volume de gás hidrogênio com o mesmo volume de gás cloro não resultava no dobro de volume de gás. A razão era a formação de compostos mistos dos dois elementos --moléculas.

A conclusão final de seu trabalho, de que "volumes iguais de todos os gases à mesma temperatura e pressão contêm o mesmo número de moléculas", ficou conhecida como o Princípio de Avogadro. No entanto, o complicado nome do italiano é mais lembrado em razão das decorrências póstumas de suas pesquisas. Tendo como base o legado de Avogadro, na segunda metade do século 19 químicos europeus como o italiano Stanislao Cannizzaro (1826-1910) e o austríaco Johann Joseph Loschmidt (1821-1895) fizeram descobertas que culminaram com a descoberta do número de Avogadro (uma homenagem póstuma ao físico), constante fundamental da natureza que define o que é um mol.

O mol é o grande terror da química de nível médio. Alunos quebram a cabeça para entendê-lo; professores de química, para explicá-lo. Ele nada mais é que uma quantidade (assim como uma dúzia ou uma centena), especialmente utilizada para fazer a conversão entre a massa de uma determinada substância e o número de átomos ou moléculas a ela correspondente.

O número de Avogadro --e, consequentemente, um mol-- é igual a cerca de 6,022 x 1023, ou seja, cerca de 600 trilhões de bilhões. Isso é, por definição, equivalente ao número de átomos em 12 gramas de carbono-12, a forma mais abundante dos átomos do elemento. A medida oficial, recomendada pelo Comitê de Dados para Ciência e Tecnologia do Conselho Internacional de Ciência (Icsu), foi feita com dois aparelhos denominados balanças de Watt (um nos Estados Unidos, outro no Reino Unido), sistemas sensíveis de escalas baseados em força eletromagnética.

O número tem uma precisão que chega a sete casas decimais depois da vírgula, ou seja, uma parte em 10 milhões. Mas uma descoberta de cientistas alemães e belgas pode exigir que a comunidade científica mude o valor dessa constante fundamental, baseada em novas medidas com cristais de silício puro. Assim como o número de Avogadro, a definição de mol também mudaria.

Pequena diferença de bilhões

Embora a diferença entre as medidas feitas pelos cientistas do PTB (Physicalisch-Technische Bundesanstalt, o laboratório alemão de padrões de qualidade), em Braunschweig, e do Instituto para Medidas e Materiais de Referência da União Européia em Geel, na Bélgica, seja equivalente a apenas um centésimo de milésimo da medida oficial do número de Avogadro, ela ainda é significativa: a diferença, apenas na quinta casa depois da vírgula de um número tão grande, ainda equivale a cerca de 6 x 1018, ou seja, 6 bilhões de bilhões. "Nosso número tem a mesma precisão do oficial [uma parte em 10 milhões], mas é substancialmente diferente", explica por telefone Peter Becker, 58, do PTB alemão. "Pode ter havido um erro nessas medidas, mas nossos dados são consistentes, e há outras circunstâncias que os favorecem", diz Becker, que realizou cerca de 20 medidas.

Até aí, como o próprio cientista admite, erros nas medidas de sua equipe poderiam realmente responder por essa diferença. No entanto, com a publicação dos dados da pesquisa na edição de setembro da revista científica internacional "Metrologia", um grupo do NPL (Laboratório Nacional de Física, do Reino Unido), que conta com uma das duas balanças de Watt que definem o número oficial, afirma ter feito novas medidas que, surpreendentemente, batem com as do grupo de Becker.

"A anomalia nos dados pode estar no experimento original, feito com a balança de Watt americana. Os novos dados da balança inglesa estão mais de acordo com as novas medidas alemãs", afirma Stuart Davidson, chefe do departamento de massa e densidade do NPL. A discussão sobre a mudança ou a manutenção do número de Avogadro --e do mol-- ficará para o ano que vem, quando haverá o próximo encontro do Comitê Internacional de Pesos e Medidas (CIPM). "É difícil dizer o que sairá desse encontro. Há muitos países e interesses envolvidos. Assim, o problema não é apenas científico, mas também cultural", diz Becker.

Com uma eventual mudança no número de Avogadro, os valores para muitas outras constantes fundamentais da natureza teriam de ser trocados. Seria o caso, por exemplo, da constante de Faraday, relacionada à carga elétrica, e da constante de Planck, ligada à energia de um fóton. Muitos trabalhos científicos que requereram altíssima precisão terão de ser revistos se os novos valores das constantes forem aprovados no encontro.

Esferas e quilos

Para chegar ao novo valor do mol, Becker e colegas construíram esferas feitas de cristal de silício puro, polidas com precisão atômica. Com auxílio delas, fizeram medidas da distância de átomo para átomo no cristal, por meio de uma técnica conhecida como interferometria de raios X.

O método consiste, grosso modo, em bombardear os raios X através das esferas e verificar, do outro lado, quanto eles se desviam de seu caminho original. As esferas são uma forma privilegiada para a construção dos cristais, por terem raio e volume precisos e não terem pontas que possam ser lascadas. A estrutura das esferas foi exaustivamente pesquisada pelos cientistas envolvidos, e a maior irregularidade em sua superfície tinha cerca de 500 átomos de altura.

Isso é o equivalente a aplainar a Terra até que a montanha mais alta tenha cerca de dez metros. "Nossa intenção não é apenas rever os valores para o número de Avogadro, por mais que isso seja importante. Na verdade, o objetivo original, do qual ainda não desistimos, era encontrar uma nova definição científica para o quilograma", diz Becker.

O problema da definição da principal unidade de massa no mundo é um velho conhecido da ciência. Enquanto outras unidades do Sistema Internacional (SI) como o segundo (tempo), o metro (distância) e o ampère (corrente elétrica) podem ser definidas com grande precisão em termos de quantidades atômicas absolutas, o quilograma é definido por um padrão de metal: um cilindro de platina e irídio de quatro centímetros de altura, guardado na sede do Birô Internacional de Pesos e Medidas (BIPM), em Sèvres, nos arredores de Paris.

Para dar uma idéia da diferença na elegância das definições: um segundo é determinado como o tempo de 9.192.631.770 ciclos de um certo tipo de radiação emitido por átomos de césio-133; o metro, pela distância percorrida pela luz numa certa fração de segundo. Qualquer pessoa que queira saber quanto um quilograma realmente pesa, no entanto, tem de viajar à França para medir o quilograma original. Se a definição do mol e do número de Avogadro chegar a uma precisão suficiente, aí um quilograma poderá ser definido em termos de átomos.

A precisão satisfatória, dizem os cientistas, é de aproximadamente alguns décimos de partes por bilhão.

Projeto Avogadro

Para alcançar o objetivo, o grupo de Becker --que faz parte do chamado Projeto Avogadro, um consórcio mundial para ligar a definição do quilograma a quantidades atômicas absolutas-- acredita que o próximo passo para aumentar a precisão das medidas seja aperfeiçoar as esferas.

O silício é encontrado na natureza em três formas estáveis, o silício-28, o silício-29 e o silício-30. As esferas de Becker atualmente contêm um pouco dos três, e o cálculo das percentagens respectivas aumenta um pouco a imprecisão das medidas. Para torná-las mais precisas, uma das saídas seria fazer um cristal de um só tipo, no caso o silício-28.

O material já está sendo produzido na Rússia e precisa passar por numerosas etapas de fabricação no país e na Alemanha até chegar à forma final das novas esferas. Segundo Becker, daqui a cerca de três ou quatro anos novas medidas poderão ser realizadas com os cristais de silício.

"Além de melhorar ainda mais o número de Avogadro e ter certeza de seu novo valor, talvez nós possamos também chegar à nova definição do quilograma, o que seria matar dois coelhos com uma cajadada só", afirma Peter Becker.

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