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28/07/2002 - 08h34

Popper foi essencial para o desenvolvimento da ciência

SHOZO MOTOYAMA*
Especial para a Folha de S.Paulo

Para as pessoas que vivem no mundo conturbado e ambíguo de hoje, poderia parecer estranho o renome alcançado pelo filósofo Karl Raimund Popper (1902-1994), sobretudo na segunda metade do século 20. Afinal, o que teria a oferecer um filósofo, ainda mais da ciência, para a solução de problemas atuais marcados pela parafernália de cunho informático e cibernético, no aparente reinado capitalista do mercado?

Já não existe mais aquela polarização ideológica que tão bem caracterizou o século passado e na qual Popper destacou-se como paladino do liberalismo. Sua veemência contra o fascismo e o comunismo, a sua defesa apaixonada de uma sociedade aberta, parecem, hoje, um anacronismo. E no universo da ciência, onde a simulação tornou-se um recurso corriqueiro graças ao avanço computacional, fundindo e confundindo a realidade virtual com a real, os seus ataques contra o método indutivo já não têm o apelo de outrora.

Para muitos, a pesquisa científica adquiriu um tom mecânico -digital talvez fosse o termo mais adequado no ritmo de computadores. Então, por que Popper?

Porque, mais do que ninguém, ele tentou analisar -com clareza e método- um mundo conturbado, cheio de guerras e contradições, como foi o século 20. E encontrou uma solução para os paradoxos da história, embora à sua maneira. Com otimismo que é raro entre intelectuais, vislumbrou o progresso do conhecimento humano como um genuíno problema filosófico. Na base desse progresso do conhecimento, segundo ele, estaria a ciência. Daí privilegiar a questão da ciência e do método científico, pondo-a no centro da sua filosofia.

Uma vez delineadas as linhas-mestras do seu pensamento, lançou-se ao combate pela defesa dos seus ideais. Esse otimismo e essa confiança na inteligência contrastam singularmente com a atitude de vários filósofos do seu tempo, alguns deles muito famosos, que no seu niilismo descartaram a existência de problemas genuinamente filosóficos.

Também parece ser essa a moda do nosso tempo. Iludidos pelas facilidades materiais e virtuais, pressionados pelos problemas candentes e imediatos relacionados com instabilidade financeira, desigualdade econômica e social e desequilíbrios ambientais, não temos sossego suficiente para, nessa época de transformações radicais, procurar problemas genuinamente filosóficos. Porém, sem consciência desses, haverá possibilidade de entender as características essenciais da cultura em gestação, sem as quais não podemos tomar o nosso norte, rumo ao século 22? Nesse aspecto, Popper é uma inspiração.

Uma lógica para a pesquisa
Quando, no início da década de 1930, o ainda jovem Popper começou a freqüentar o famoso "Círculo de Viena", nem ele próprio poderia imaginar o papel central que desempenharia posteriormente no campo de filosofia da ciência.

Muito pouca gente esperava um futuro promissor daquele obscuro professor secundário, nascido em Himmelhof, distrito de Viena, há exatos cem anos, no dia 28 de julho de 1902. A única coisa que o distinguia dos demais integrantes do círculo, constituído por filósofos como Moritz Schlick (1882-1936), Otto Neurath (1882-1945), Rudolph Carnap (1891-1970), Hans Reichenbach (1891-1953), Herbert Feigl (1902-1988) e outros afamados "positivistas lógicos" da época, era a sua rejeição da indução como lógica da ciência, em flagrante oposição aos seus companheiros.

De fato, estes defendiam que o método científico era o indutivo. Em outras palavras, partindo-se de enunciados singulares, resultantes de descrições de observações ou experimentos, chega-se a (induz-se) enunciados universais -hipóteses ou teorias. Mas, como argumentava Popper, não existe nenhuma garantia lógica capaz de assegurar a inferência dos enunciados universais a partir de enunciados singulares, por mais numerosos que fossem estes. Mesmo observando milhares e milhares de cisnes brancos, não se pode afirmar que todos os cisnes são brancos, pois, a despeito de serem raros, também existem cisnes negros.

Essa questão sobre a validade e as condições de inferência indutiva é conhecida como "problema da indução". Ela remete à indagação acerca da validade e veracidade dos enunciados universais baseados na experiência. Contudo, a descrição desta é sempre um enunciado singular, não um universal. Portanto, o problema da indução só pode ser resolvido se existir um "princípio de indução", capaz de garantir a inferência indutiva. Porém, do ponto de vista lógico, não existe tal princípio. Logo, diz Popper, o método indutivo não é o método da ciência. E não adianta deslocar a questão, afirmando que a inferência indutiva pode não ser válida estritamente, mas que tem algum grau de confiabilidade e de probabilidade, como fizeram os positivistas lógicos, utilizando o cálculo de probabilidades. Na sua essência, o problema fica inalterado e o impasse continua.

Então, não tem sentido falar em lógica da pesquisa científica? Claro que sim, responde Popper. O que estava errado era a forma da pergunta. Ela queria saber se existe uma fonte privilegiada, cujos dados garantissem por si o conhecimento científico, demarcando a fronteira da ciência e da não-ciência (metafísica) e qual a lógica da demarcação. Tal fonte não existe. Os dados sensórios, base da indução, tão caros aos pensadores do Círculo de Viena, não têm esse "pedigree" capaz de assegurar, pela origem, o caráter científico do conhecimento. Todavia, eles podem perfeitamente mostrar a falsidade das hipóteses e teorias que constituem a ciência, fundamentada em uma assimetria da lógica clássica conhecida como "modus tollens". Se o enunciado B é deduzido do enunciado A, a sua veracidade não implica necessariamente na verdade de A, mas da sua falsidade decorre necessariamente a falsidade de A.

De modo semelhante, não é possível afirmar a validade de um enunciado universal, porém é perfeitamente possível refutá-lo, ou falseá-lo, segundo a nomenclatura do austríaco. Assim, o trabalho do cientista seria fazer conjeturas sobre uma realidade e depois tentar refutá-las. Na primeira parte do processo, não há lógica. Esta aparece na segunda parte, no esforço de refutação, baseado no "modus tollens". A teoria ou hipótese conjeturada deve, portanto, ter um formato adequado para ser testado, caracterizado pelo seu conteúdo empírico. Entretanto, sempre existe a possibilidade de salvar uma teoria, acrescentando uma hipótese ad hoc. Para que a lógica da pesquisa tenha validade, Popper solicita aos pesquisadores que não recorram a tal expediente, uma espécie de convenção. Essa era a sua engenhosa proposta, posteriormente, publicada com o título de "Logik der Forschung" (Lógica da Pesquisa, em alemão). Estava aí o cerne do pensamento popperiano.

O triunfo de um filósofo
Quando "Logik der Forschung" foi publicado pela primeira vez em 1935, pouca gente deu-lhe importância. Principalmente entre os filósofos o silêncio foi quase total. Popper amargou um quase desterro na Nova Zelândia, no período entre 1937 e 1945. Entrementes, continuou a ensinar, a pesquisar, a escrever e a ministrar conferências e seminários, em uma atividade quase febril.

Preocupado com a ascensão do fascismo e do comunismo, escreveu um livro contra essas doutrinas que se tornou famoso: "Open Society and its Enemy" (Sociedade Aberta e Seu Inimigo, em inglês), publicado em 1945. Esse trabalho seria complementado por outro, editado 12 anos depois, com o título de "The Poverty of Historicism" (A Pobreza do Historicismo), tornando-o um opositor do marxismo -justo ele, que tinha sido, na sua juventude, um marxista. Entretanto, naquele tempo do final da Segunda Guerra, ele continuava no limbo na seara filosófica.

O reconhecimento viria de outras áreas. O economista Friedrich von Hayek levou-o para a Escola de Economia de Londres em 1946, onde Popper permaneceu pelo resto de sua vida acadêmica. Ao mesmo tempo, começaram a aparecer adeptos influentes no campo científico, sobretudo, no campo de biologia. A característica de ser uma filosofia de ação, valorizando a criatividade, além do caráter evolucionário à Darwin, seduziu um grupo seleto de talentosos biólogos. Pelo menos, três deles ganharam o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia: Peter Medawar (1960), John Eccles (1963) e Jacques Monod (1965). Nenhum deles poupou elogios ao grande filósofo, enfatizando como as idéias popperianas fomentaram as suas investigações.

Nem no domínio da arte faltaram louvores, como aquele feito por Ernst Gombrich, dizendo que ficaria orgulhoso se notassem influência de Popper nos seus escritos. Assim, na década de 60, ele começou a firmar-se como um dos nomes mais conhecidos, mesmo entre filósofos. Todavia, a polêmica não poderia estar ausente na sua vida. Exatamente nessa época, do auge da sua fama, apareceu a obra de Thomas S. Kuhn "A Estrutura das Revoluções Científicas" (1962), colocando em xeque a sua tese principal.

Segundo Kuhn, os cientistas, em geral, não estão interessados em refutar as teorias, mas em salvá-las, contrariando a convenção proposta por Popper. Isso, entretanto, não abalou o austríaco naturalizado britânico. Muito ao contrário. Popper reconheceu a existência de uma "ciência normal", no sentido kuhniano, na qual o falseamento é evitado, considerando-a objeto de pesquisa importante para o historiador de ciência. Contudo, de acordo com o seu ponto de vista, para o lógico de ciência isso pouco tem a acrescentar. De qualquer modo, até sua morte, em 1994, aos 92 anos, continuou com suas idéias e debates, instigando não só o campo filosófico, mas talvez muito mais o científico. Confesso que não sou popperiano, mas não teria Peter B. Medawar razão em afirmar que "Popper é, sem dúvida, o maior filósofo da ciência que já existiu"?

Shozo Motoyama é professor titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo, diretor do Centro Interunidade de História da Ciência/USP
 

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