|
Um shopping,
um hospital, Zé do Caixão e um cinema compõem
a revitalização de uma cidade feia e violenta
Na quinta-feira, foi divulgada oficialmente a pior notícia
de toda a gestão Serra: o aumento de roubos e mortes
em São Paulo, interrompendo uma queda de vários
anos -o indicador de homicídios diminuía desde
1999. Os roubos bateram, agora, um recorde: crescimento de
19% nos três primeiros meses deste ano, em comparação
com o mesmo período de 2008.
A escassa boa notícia ficou por conta da cidade de
São Paulo. Se no interior os assassinatos se expandiram
em 11%, na capital a queda atingiu 6%. Isso ajuda a entender
um dos mais interessantes e pouco reconhecidos fenômenos
sociais do país: a resistência paulistana.
A redução ocorre porque, em meio ao mar de selvageria,
prosperam ilhas de civilidade -um dos sinais ocorre neste
final de semana, com a Virada Cultural, numa demonstração
de reconquista da rua. Essas ilhas de civilidade geram focos
de resistência que se manifestam das mais diferentes
formas.
O hospital Sírio-Libanês vem colaborando no
currículo de uma escola de ensino médio frequentada
só por alunos vindos da rede pública. Essa participação
tornou-o parceiro de uma experiência cujo resultado
foi visto na semana passada. Patrocinada por uma empresa (Embraer),
a escola ficou, na lista do Enem, em primeiro lugar no Estado
de São Paulo e em 9º lugar no Brasil. É
uma façanha e tanto levando em conta que o colégio
foi criado há seis anos e seus alunos são de
famílias pobres.
Uma empresa de shopping centers (Iguatemi) resolveu, em 2007,
contratar profissionais para ajudar um colégio também
público (Dr. Luís Arrobas Martins) na zona sul.
Na divulgação, há duas semanas, dos resultados
nas provas estaduais, eles ficaram em primeiro lugar em matemática
na capital e em segundo, se computadas as demais matérias.
O Iguatemi engrossou um movimento (Parceiros da Educação)
em que empresários e executivos apadrinham colégios
públicos, com métodos de gestão inovadores.
O hospital e o shopping não são a única
razão do desempenho dessas escolas; há vários
parceiros e uma rede de apoios em ação. São
Paulo é o epicentro do movimento pela qualidade de
ensino, espalhando-se pelo país, graças, em
parte, à elite econômica -e aí surgem
"ilhas" como a Dr. Luís Arrobas Martins.
Neste final de semana, a cultura é o grande elo de
uma cidade fragmentada, murada e amedrontada. Por 24 horas,
na Virada Cultural, as ruas são tomadas como se fossem
plateias em movimento. Pode-se saborear desde a encenação
com fogos, danças e músicas de artistas franceses,
no parque da Luz, até um Zé do Caixão
falando contos de terror num cemitério e um festival
de filmes de zumbis num cinema decadente -o próprio
cinema um zumbi.
Um shopping center sofisticado, um hospital de excelência,
Zé do Caixão e um cinema tipo pulgueiro compõem,
com todas as suas diferenças, a experiência de
revitalização de uma cidade feia, violenta,
desorganizada, deseducada.
Sinal de desorganização: na quinta-feira, a
Secretaria Municipal da Habitação informou que
a população favelada cresce duas vezes mais
rápido do que a média da cidade.
Sinal de deseducação: a pior notícia
de toda a gestão Kassab foi o fato de que os alunos
do ensino fundamental conseguiram tirar notas ainda menores,
segundo os testes municipais, mesmo depois do aumento salarial
aos professores. E olha que já era péssimo.
Para agravar a situação, a Secretaria Municipal
da Educação sonega os dados detalhados sobre
o desempenho de cada escola.
Mas é nesta cidade que se arquitetou o pagamento de
bônus a partir do desempenho dos professores da rede
estadual, uma das medidas socialmente mais ousadas do país.
O trânsito e a poluição não param
de piorar. Mas o efeito "ilha de civilidade" se
olha, nas ruas, com a eliminação dos outdoors
- que só pegou porque caiu no gosto popular. Foi aqui
que se articulou, com amplo apoio da sociedade, a proposta
(mérito de José Serra) de proibir o fumo em
lugares fechados.
A prefeitura resolveu, por pressão da sociedade, estabelecer
metas sobre o que pretende fazer. A pressão é
resultado da mais abrangente aliança (Nossa São
Paulo) de uma cidade para melhorar seus indicadores.
No próximo mês, 63 comunidades dos bairros mais
pobres começam a receber capacitação
do Unicef para criar uma rede de proteção às
crianças e aos adolescentes. Já comentei aqui
que a USP (Fundação Vanzolini) inventou uma
cadeira para ensinar engenharia comunitária.
Essa é lógica de uma cidade que vai, aos poucos,
aprendendo a lidar com as ruas, com muitos tropeços
-às vezes tombos, como a evolução dos
roubos, as notas em queda de seus alunos ou o número
maior de mortes e doenças causadas pela poluição.
Somos, em essência, parecidos com a cracolândia,
onde, em meio à devastação, aparecem
a sofisticação dos museus e das salas de concertos.
E, nesse final de semana, serão tantos e tão
sofisticados eventos naquele símbolo da degradação
(um show de fogos com dançarinos e músicos franceses,
por exemplo) que o bairro se associará ao nome Luz
e não às chamas do crack.
A questão é saber se, no futuro, como se nota
na fugaz Virada Cultural, as ilhas de civilidade formarão
um arquipélago. Afinal, amanhã a Luz será,
de novo, cracolândia. E São Paulo será
São Paulo.
PS - André Douek, professor de fotografia, está
fazendo uma experiência educativa neste final de semana.
Está orientando fotógrafos amadores a ver como
a população se apropria de uma cidade quando
não se sente acuada pela violência e pelos carros,
mas unida pela arte. Vou postar algumas fotos, já neste
domingo, no catracalivre.com.br.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
|