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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
05/02/2007
Pro dia nascer feliz

A grande sacada de Nova York é traduzir estatisticamente a mensagem de que nada é pior que não reverenciar talentos


A cidade de Nova York está transformando um enorme problema numa grande solução. Sem conseguir preencher as vagas nas escolas mais violentas e de pior desempenho, a prefeitura cometeu um gesto desesperado: um concurso em que os candidatos a professor não precisariam ter qualquer experiência em sala de aula nem diploma de pedagogia. O salário inicial é de R$ 7,5 mil mensais.

Uma vez selecionado, o candidato passaria por uma preparação de três semanas e, enquanto estivesse dando aula, receberia gratuitamente uma especialização para habilitá-lo, se ele quisesse, a ser professor definitivo. O resultado do concurso foi inesperado.

O programa atraiu talentos das mais variadas áreas, como marketing, finanças, mídia e artes, muitos dos quais interessados em uma nova experiência profissional ou querendo fazer a diferença em sua comunidade. Entusiasmou especialmente ex-executivos, já aposentados, alguns dos quais de empresas multinacionais. É, enfim, um material humano que dificilmente poderia ser mais bem qualificado e motivado.

Esse é apenas um detalhe da reinvenção das escolas públicas de Nova York, embaladas por um inusitado desafio: o prefeito Michael Bloomberg pediu aos eleitores que avaliassem sua administração a partir da nota dos alunos. Se a nota for baixa, ele é que deve ser o reprovado.

Entre várias derrotas, críticas e erros, o prefeito está vencendo -e produzindo boas dicas para o Brasil.

Os recursos daquela cidade só apareceriam para os brasileiros em sonho. Nova York gasta por ano R$ 35 bilhões para cuidar de 1,1 milhão de estudantes. Compare: a rede municipal paulistana tem o mesmo número de matrículas, mas um orçamento oito vezes menor.

Apesar dessas invejáveis cifras, sem contar com mais alguns bilhões de apoio em programas de fundações empresariais e entidades comunitárias, a cidade não estava contente: além do alto nível de evasão, 51% dos alunos exibiam um desempenho de escrita, leitura e matemática abaixo da média nacional.

Por isso, o desafio do prefeito tornou-se um suspense tão interessante. Para ele, era um "tudo ou nada", não poderia mudar, no meio do caminho, de prioridade. Apostou que encontraria mais soluções na sua rica vivência de gestão empresarial do que nos escritos acadêmicos.

Com a ajuda de empresas, começaram a ser construídas pequenas escolas, na convicção de que, em unidades menores, alunos se sentiriam mais acolhidos, reconhecidos e estimulados. Não seriam invisíveis.

Resolveu-se mexer na gestão. Os diretores ganharam autonomia, mas, em contrapartida, passaram a correr o risco de demissão se não atingissem as metas. Estavam à sua disposição mais verbas para inovação curricular, formação de professores e atividades extracurriculares. Resultado: nessas escolas, 78% dos alunos estão acima da média nacional, com impacto em toda a rede.

O leitor deve estar, neste momento, pensando que os brasileiros nada têm a tirar de lições de uma cidade que pode gastar tanto -aliás, na semana passada, o prefeito de Nova York destinou mais R$ 5 bilhões às escolas em 2007, sem contar ajuda extra do governo estadual de mais R$ 7 bilhões para os próximos anos.

A primeira lição é a mais óbvia: nem sempre excesso de dinheiro significa ganhos de qualidade. A menos óbvia: uma direção motivada, orientada por metas claras compartilhadas com professores, pais e alunos é onde tudo começa.

Devido às baixas condições de trabalho, o que vemos, no Brasil, especialmente na periferia das grandes cidades, é uma alta rotatividade de diretores e de professores, além de um excesso de faltas; há diretores que não ficam mais do que um ano à frente de uma escola. Não se premia quem se esforça nem se pune quem demonstra baixo desempenho e, para completar, o envolvimento dos pais é pequeno e o currículo, desinteressante. Até mesmo falar em premiar as escolas de melhor performance é apontado pelos sindicatos como atentado "neoliberal". Aqueles que ultrapassam esses obstáculos (e tenho conhecido vários casos) são, sem nenhum exagero, heróis.

O que Nova York nos mostra , em números, é que, nesses termos, a chance de gerarmos talentos em nossas escolas será sempre uma exceção -assim como os heróis.

PS - Para quem quiser ver o que estou falando, recomendo o filme "Pro Dia Nascer Feliz", que acaba de entrar em cartaz. É o mais profundo documentário já produzido sobre jovens brasileiros e o aprendizado. Ali vemos como nosso pior desperdício é o desperdício de talentos. A grande sacada de Nova York é traduzir estatisticamente a mensagem de que nada pode ser mais grave do que deixar de reverenciar os talentos -e que sempre, em qualquer situação e em qualquer idade, eles podem ser revelados.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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