A grande
sacada de Nova York é traduzir estatisticamente a mensagem
de que nada é pior que não reverenciar talentos
A cidade de Nova York está transformando um enorme
problema numa grande solução. Sem conseguir
preencher as vagas nas escolas mais violentas e de pior desempenho,
a prefeitura cometeu um gesto desesperado: um concurso em
que os candidatos a professor não precisariam ter qualquer
experiência em sala de aula nem diploma de pedagogia.
O salário inicial é de R$ 7,5 mil mensais.
Uma vez selecionado, o candidato passaria por uma preparação
de três semanas e, enquanto estivesse dando aula, receberia
gratuitamente uma especialização para habilitá-lo,
se ele quisesse, a ser professor definitivo. O resultado do
concurso foi inesperado.
O programa atraiu talentos das mais variadas áreas,
como marketing, finanças, mídia e artes, muitos
dos quais interessados em uma nova experiência profissional
ou querendo fazer a diferença em sua comunidade. Entusiasmou
especialmente ex-executivos, já aposentados, alguns
dos quais de empresas multinacionais. É, enfim, um
material humano que dificilmente poderia ser mais bem qualificado
e motivado.
Esse é apenas um detalhe da reinvenção
das escolas públicas de Nova York, embaladas por um
inusitado desafio: o prefeito Michael Bloomberg pediu aos
eleitores que avaliassem sua administração a
partir da nota dos alunos. Se a nota for baixa, ele é
que deve ser o reprovado.
Entre várias derrotas, críticas e erros, o prefeito
está vencendo -e produzindo boas dicas para o Brasil.
Os recursos daquela cidade só apareceriam para os
brasileiros em sonho. Nova York gasta por ano R$ 35 bilhões
para cuidar de 1,1 milhão de estudantes. Compare: a
rede municipal paulistana tem o mesmo número de matrículas,
mas um orçamento oito vezes menor.
Apesar dessas invejáveis cifras, sem contar com mais
alguns bilhões de apoio em programas de fundações
empresariais e entidades comunitárias, a cidade não
estava contente: além do alto nível de evasão,
51% dos alunos exibiam um desempenho de escrita, leitura e
matemática abaixo da média nacional.
Por isso, o desafio do prefeito tornou-se um suspense tão
interessante. Para ele, era um "tudo ou nada", não
poderia mudar, no meio do caminho, de prioridade. Apostou
que encontraria mais soluções na sua rica vivência
de gestão empresarial do que nos escritos acadêmicos.
Com a ajuda de empresas, começaram a ser construídas
pequenas escolas, na convicção de que, em unidades
menores, alunos se sentiriam mais acolhidos, reconhecidos
e estimulados. Não seriam invisíveis.
Resolveu-se mexer na gestão. Os diretores ganharam
autonomia, mas, em contrapartida, passaram a correr o risco
de demissão se não atingissem as metas. Estavam
à sua disposição mais verbas para inovação
curricular, formação de professores e atividades
extracurriculares. Resultado: nessas escolas, 78% dos alunos
estão acima da média nacional, com impacto em
toda a rede.
O leitor deve estar, neste momento, pensando que os brasileiros
nada têm a tirar de lições de uma cidade
que pode gastar tanto -aliás, na semana passada, o
prefeito de Nova York destinou mais R$ 5 bilhões às
escolas em 2007, sem contar ajuda extra do governo estadual
de mais R$ 7 bilhões para os próximos anos.
A primeira lição é a mais óbvia:
nem sempre excesso de dinheiro significa ganhos de qualidade.
A menos óbvia: uma direção motivada,
orientada por metas claras compartilhadas com professores,
pais e alunos é onde tudo começa.
Devido às baixas condições de trabalho,
o que vemos, no Brasil, especialmente na periferia das grandes
cidades, é uma alta rotatividade de diretores e de
professores, além de um excesso de faltas; há
diretores que não ficam mais do que um ano à
frente de uma escola. Não se premia quem se esforça
nem se pune quem demonstra baixo desempenho e, para completar,
o envolvimento dos pais é pequeno e o currículo,
desinteressante. Até mesmo falar em premiar as escolas
de melhor performance é apontado pelos sindicatos como
atentado "neoliberal". Aqueles que ultrapassam esses
obstáculos (e tenho conhecido vários casos)
são, sem nenhum exagero, heróis.
O que Nova York nos mostra , em números, é que,
nesses termos, a chance de gerarmos talentos em nossas escolas
será sempre uma exceção -assim como os
heróis.
PS - Para quem quiser ver o que estou falando, recomendo
o filme "Pro Dia Nascer Feliz", que acaba de entrar
em cartaz. É o mais profundo documentário já
produzido sobre jovens brasileiros e o aprendizado. Ali vemos
como nosso pior desperdício é o desperdício
de talentos. A grande sacada de Nova York é traduzir
estatisticamente a mensagem de que nada pode ser mais grave
do que deixar de reverenciar os talentos -e que sempre, em
qualquer situação e em qualquer idade, eles
podem ser revelados.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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