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REFLEXÃO


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urbanidade
09/03/2005
Atrás dos tapumes

Depois de 32 anos construindo prédios e casas, o operário Antônio Nunes de Oliveira entrou, enfim, na história de uma de suas obras. "Ensino engenheiro a trabalhar, afinal nenhum estudo substitui a prática", disse Antônio a um punhado de adolescentes que, em situação normal, não cruzariam os tapumes para levantar a biografia de operários.

Migrante vindo do interior de São Paulo em 1966, o mestre-de-obras Antônio rompeu a rotina do anonimato porque, sem saber, estava virando personagem de um livro escrito por crianças e adolescentes. "O importante é nunca desistir do sonho", aconselhou aos seus jovens entrevistadores.

A descoberta de Antônio nasceu de um transtorno. No ano passado, a escola Nossa Senhora das Graças (o Gracinha) foi submetida a uma profunda reforma. As aulas não iriam parar e os alunos teriam de conviver com o barulho e a poeira. Uma das coordenadoras da escola, Maria Stella Scavazza, lembra-se das dores de reformas antigas. Certa vez, chegaram a fazer uma emocionada cerimônia coletiva de despedida de um ipê-roxo que reinava glorioso no pátio, mas deu lugar a uma biblioteca.

O corte daquele ipê-roxo não chegava nem remotamente perto do trauma que se delineava na escola.

Já que o tumulto era inevitável, a saída foi transformar a obra em sala de aula. Da experiência, surgiu "Atrás dos Tapumes", livro lançado neste mês, em que os alunos contam o que viram e sentiram durante a prolongada obra. Resolveram registrar a vida dos trabalhadores e as diversas etapas da reforma.

Muitos estudantes, porém, olharam também para dentro e se preocuparam em se perceberem diante daquela mutação. "A obra que acontece na estrutura física representa também uma renovação no meu interior e me mostra que há sempre um momento em que se precisa deixar o passado e construir o futuro", escreveu Julia Lenzi. "O exercício da memória é o de formação do ser, relembrar é despertar a mim mesma. E o que essas paredes têm em mim? O que eu tenho delas? Apenas eu mesma", acrescentou Letícia Genesini.

Com os operários da obra, mestre Antônio, que já ensina engenheiros, fez do canteiro sala de aula e dos tapumes lousas. Afinal, quantas lições de vida são melhores para alunos de classe média e alta do que o exemplo de um migrante que, apesar de tudo, nunca pára de sonhar?


Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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