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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
27/02/2005
Terra do Nunca

Depois de ter o filho assassinado há quatro anos, Maria de Fátima Rodrigues viu-se às voltas com uma contabilidade macabra.

Seu filho Anderson, de 17 anos, fazia parte de uma turma de 20 amigos, todos envolvidos com drogas e marcados para morrer. Sobrou apenas um, que está preso. "Fui fazendo as contas porque virei uma espécie de conselheira emocional", diz Maria de Fátima.

Mães de amigos de Anderson que foram abatidos a tiros começaram a procurar Maria de Fátima em busca de consolo. Aos poucos, ia surgindo um grupo que se encontrava regularmente para compartilhar a dor e aprender a viver com a sensação de perda. "Somos hoje 19 mães", diz ela, uma líder comunitária da zona leste, em São Paulo.

Acostumada a testemunhar, em sua região, os mais diversos tipos de brutalidade, ela se deparou, há pouco tempo, com um sinal exótico da cultura da violência. Um sobrinho pediu-lhe que espalhasse pelo bairro uma mentira -a de que ele seria parente do traficante Fernandinho Beira-Mar. Intrigada, quis saber a razão do pedido. O menino explicou: "Assim vamos ser respeitados e ninguém vai mexer com a gente".

A contabilidade trágica de Maria de Fátima é mais precisa do que a estatística, fria, sem rostos, divulgada na quinta-feira passada pelo IBGE -a de que existem cada vez mais mulheres do que homens no Brasil.

De 1992 a 2003, registrou-se um aumento de 57% na diferença entre a quantidade de homens e a de mulheres. É uma diferença provocada, pelo menos em parte, pela epidemia da violência. Desde 1990, foram assassinadas cerca de 700 mil pessoas no país, a imensa maioria delas constituída de homens jovens, que não tiveram o direito de crescer. Nessa Terra do Nunca, perdem-se futuros maridos porque se perdem os filhos.

Para quem mora em São Paulo, a tradução da estatística veio acompanhada, na semana passada, da sonoplastia e da coreografia da Febem. Tomamos conhecimento de uma série de rebeliões seguidas realizadas pelos adolescentes. São cenas que nos fazem lembrar de que, apesar de cada um deles custar R$ 1.700 mensais aos cofres públicos, muitos estão não só longe da recuperação mas, possivelmente, piores do que estavam antes.

É impossível entender o drama de Maria de Fátima e de suas amigas sem mencionar pelo menos mais duas estatísticas divulgadas na quinta-feira pelo IBGE: a queda da renda dos trabalhadores nas regiões metropolitanas e, mais importante, a taxa de desemprego entre os jovens.

A renda dos trabalhadores, de 1996 a 2003, chegou, em algumas regiões metropolitanas, a cair até 42%; em Salvador, a queda foi de 33% e, em São Paulo, foi de 27%. Por aí se percebe uma leve medida do aumento da pobreza.

A taxa média de desemprego, em 2003, foi de 9,7%. Entre jovens, é quase o dobro: 18%. Para entender a dimensão que assumiu a violência, temos de ir mais fundo e prestar atenção ao desemprego entre os jovens de baixa escolaridade que vivem nas regiões periféricas. Aí encontramos os guetos de desalento, nos quais faz sentido o pedido do garoto para ser conhecido como parente de Fernandinho Beira-Mar.

Apesar desse caráter explosivo das grandes cidades, inexistem políticas metropolitanas que estabeleçam programas conjuntos entre prefeitos, governadores e o presidente da República. Há alguns exemplos em andamento -o mais fértil deles na região do ABCD, em São Paulo, onde os prefeitos se uniram para cuidar de problemas comuns. Aliás, em Diadema, naquela região, os índices de violência vêm-se reduzindo expressivamente graças ao lançamento de programas interdisciplinares para os jovens.

Soma-se à falta de articulação metropolitana a fragilidade de programas de inclusão de jovens combinada com a baixa qualidade do ensino público. Vai entrar para a história o desabafo de Lula ao tomar conhecimento da situação de escolas na Baixada Fluminense. "Se a escola estiver assim, estamos desgraçados neste país." Evidentemente estava.

À contabilidade macabra de Maria de Fátima e de suas amigas de perda, soma-se outra violência, que é o fato de o principal debate político brasileiro estar centrado na proposta de aumento dos salários dos parlamentares. É algo que, por suas repercussões, vai custar mais de R$ 1 bilhão aos cofres públicos -exatamente o que o Ministério da Educação está pedindo para que o ensino médio público não entre em colapso.

PS - O que me incomoda especialmente na Febem é um fato óbvio: existem no país, a começar de São Paulo, unidades em que não existem rebeliões e em que os jovens conseguem aprender e voltar à sociedade. São espaços pequenos e os internos estão próximos da família, além de receberem tratamento psicológico e educacional. O complexo do Tatuapé segue a trilha do fracasso previsível. Mesmo assim, sou obrigado a reconhecer como algo extraordinário a demissão, de uma só vez, de centenas de monitores suspeitos de envolvimento em casos de prática de maus-tratos e em rebeliões. Merece também elogios a decisão de tentar diminuir o número de adolescentes presos, oferecendo-lhes semiliberdade. O governo tem de fazer no Tatuapé exatamente o que fez no Carandiru: botar abaixo e fazer dali um parque.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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