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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
11/04/2004
Soltem os animais

A batido com a morte por envenenamento de 73 de seus animais, o Zoológico de São Paulo resolveu também se proteger contra furto e recorreu à tecnologia de monitoramento. Cada animal terá implantado no corpo um chip conectado a satélites, a exemplo do que já ocorre com automóveis, recurso que também é vendido para ser implantado em seres humanos como proteção a seqüestros.
Por incrível que pareça, não é exagero dizer que, no caso, as grades passaram a proteger os animais de homens que deveriam estar enjaulados -e não os homens dos animais.

O zoológico presta-se como uma extraordinária metáfora da selvageria humana. Basta ver algumas notícias publicadas nos últimos sete dias apenas na cidade de São Paulo.

1) Depois de 65 dias em cativeiro, a mãe e a filha de três anos foram libertadas, mediante pagamento. Os seqüestradores enviaram vídeos das duas chorando desesperadamente diante de armas que lhe eram apontadas.
2) Quadrilhas estão surrupiando até mesmo equipamentos públicos que medem poluição, vendidos como sucata; também estão levando bustos para vender como cobre derretido, além de cabos telefônicos e trilhos de trem.
3) O secretário da Segurança de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, apresentou estudos mostrando que o aumento dos roubos estaria intimamente associado ao desemprego e anunciou, sem meias palavras, que o poder da polícia chegou ao limite.
4) Thomaz, filho do governador Geraldo Alckmin, passeava de moto e foi assaltado. Voltou sem a moto para casa. Comparado ao que já lhe aconteceu, até que não foi tão grave assim: tempos atrás, tentaram roubar seu automóvel e um dos seguranças que o protegiam morreu baleado.

Animais com chips, secretário afirmando que a polícia está perdendo o controle, seqüestro de mãe com filha de três anos, filho de governador assaltado: o que é mais necessário para tomar alguma providência realmente ampla contra a banalização da violência?

Não vou aqui fazer o papel de ingênuo pregando rápido crescimento econômico e mais gastos orçamentários. Isso é um bom começo para não ter começo nenhum. Mesmo que o crescimento seja veloz e se produzam mais empregos, o índice de criminalidade continuará alto. Talvez, quem sabe, não piore.

Muitos estudos mostram, com números, que aumento no desemprego e queda de renda geram mais criminalidade quando o tecido social está esgarçado e o indivíduo perdeu os laços familiares, comunitários, religiosos. Ou seja, perdeu a perspectiva de inserção na sociedade.

Vários especialistas alertam que há, porém, espaço para reduzir os danos, o que exige articulação e foco nos gastos sociais. E, aqui, não há nenhuma novidade. Já foram esboçados vários planos e ficaram engavetados por falta de liderança política.
Evidente que são articulações complexas, envolvem diferentes atores, mas, fora disso, não há saída. Estudos recomendam que o país escolha algumas de suas áreas mais violentas nas regiões metropolitanas e grandes cidades -e, nessas áreas, realize um esforço modelar de elevação do capital social combinado com medidas repressivas.

Isso significa que vários ministérios, secretarias estaduais, municipais, entidades não-governamentais e entidades comunitárias executarem conjunta e de forma coordenada uma ação, centrada em saúde, segurança, habitação, justiça, educação e políticas compensatórias de renda.

Só o presidente da República, liderando diretamente uma comissão com governadores e prefeitos, seria capaz de acionar uma rede de tal complexidade. Dizem quase todos que tal ofensiva é impossível, apesar de a violência ser um dos principais temas nas campanhas eleitorais.

Nem mesmo projetos federais mais acanhados contra a violência saíram do papel. Talvez seja mesmo impossível. Talvez nem exista habilidade gerencial para uma ação conjunta desse porte nem competência nem vontade política. Mas, pelo menos, o eleitor deveria saber que não se pode fazer muito, mas alguma coisa se pode fazer apenas concentrando esforços e melhorando o gasto público -e só não é realizado por falta de competência e/ou de vontade.

É mais fácil conviver com a idéia de que a cidade mais importante da América Latina tem de proteger os animais das bestas humanas. Ou com a declaração de um secretário da Segurança de Estado mais rico do Brasil de que, diante da crise social, a polícia já chegou ao seu limite. Não estão protegidos os bichos do zoológico nem os filhos de quem manda na polícia.

PS - Os governantes serão cada vez mais julgados pelos empregos que ajudarem a criar como pelas vidas que puderem salvar -são os dois grandes indicadores-síntese nacionais. Mais cedo ou mais tarde, a população vai acompanhar os índices de criminalidade como acompanhava os índices de inflação.


Esta coluna é publicada originalmente na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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