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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
20/02/2006
Fala sério

Numa experiência conduzida pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, adolescentes usuários pesados de maconha foram convidados a ouvir suas falas gravadas nas sessões terapêuticas. Todos iam regularmente ao consultório sob efeito da droga -ninguém lhes pediu que fumassem antes das consultas. O resultado da escuta surpreendeu tanto os pacientes como os pesquisadores.

Ao escutarem suas falas, os jovens se mostraram incomodados com as longas pausas entre as palavras, as frases sem nexo, as hesitações, gagueiras e um tom de voz que lhes pareceu irritante. Imaginaram-se ridículos falando em público. Tal recurso fez com que muitos deles percebessem o perigo das alterações provocadas pela droga e aceitassem, com menos dificuldade, tratamento. Notou-se também o aumento dos períodos de abstinência.

Para chegar a essas conclusões, compararam-se dois grupos, cada qual com 32 participantes, todos da mesma idade, posição social e intensidade semelhante no uso de maconha. Apenas um deles submeteu-se à experiência das gravações. Evidentemente esse truque é apenas um detalhe num tratamento que envolve terapia, apoio familiar e, em muitos casos, remédios. O que se revela, nesta experiência de comunicação, é o risco da invisibilidade para os jovens -está aí também uma das razões para a epidemia da violência no país.

Uma das orientadoras desses estudos, a professora Sandra Scivoleto, chefe do Ambulatório de Adolescentes e Drogas do Instituto de Psiquiatria da USP, está convencida de que existe uma relação direta entre invisibilidade e dependência de drogas. Invisibilidade significa a sensação de não pertencer a nada ou a ninguém. "O adolescente que não consegue se destacar nos esportes, nos estudos, nos relacionamentos sociais, pode buscar nas drogas a sua identificação. A sensação inicial do não-pertencimento é resolvida: o jovem passa a pertencer ao mundo das drogas, onde adquire uma função."

Os efeitos da invisibilidade se tornam visíveis em estatísticas sobre jovens, de classe média, que abusam das drogas, acompanhados pelo Instituto de Psiquiatria da USP: 85% abandonaram os estudos, 64% furtaram ou roubaram, 47% indicaram algum nível de envolvimento com o tráfico. A maioria deles tinha 15 anos de idade e usava drogas nos últimos dois anos e meio.

Em várias experiências que conheci dentro e fora do Brasil, está na cara como essa sensação de não-pertencimento corrói um indivíduo, mina sua auto-estima e dificulta a criação de laços afetivos. O abuso de droga cria então um círculo vicioso, simbolizado na própria dificuldade de expressão pela fala. É o que constatou, no consultório, a professora Sandra, acostumada a cuidar de jovens das mais diferentes classes sociais. "A capacidade de expressão é uma das principais ferramentas que permitirão ao jovem se inserir no mundo, se reconhecer como indivíduo único e estabelecer relações. Essa cadeia de relacionamentos é o que o manterá num círculo virtuoso, não mais vicioso, de construção e edificação. No momento em que ele se sentir respeitado em seu espaço e função, passará a respeitar o outro."

Ela está certa. Testemunhei, em muitos casos, como a abertura de canais de comunicação pelo vídeo, poesia, música, fotografia, literatura, rádio, dança, artes plástica serviu como remédio para interromper em jovens o círculo vicioso da invisibilidade. Daí que fiquei convencido de que todas as escolas deveriam sempre incluir nas suas atividades extracurriculares projetos de comunicação.

Por sinal, está começando a prosperar em algumas universidades brasileiras o estudo sobre o que se convencionou chamar de "educomunicação". Formam-se educadores com habilidades de comunicação e comunicadores com conhecimento de pedagogia. Neste ano de sucessão presidencial, a violência estará certamente no topo das discussões. Se quiserem falar sério sobre o tema, os candidatos vão ter de estudar como funcionam bem programas de protagonismo juvenil combinados com projetos de comunicação para que se possam expressar.

P.S. Na íntegra, o depoimento da professora Sandra, que acredito servir para ajudar na reflexão de pais e professores. Na sua visão, o uso de drogas, além de prejudicar o estudo, retarda e dificulta a escolha da vocação profissional. Estão ali também mais detalhes sobre a experiência na USP, que conta com a participação do fonoaudiólogo Chistian César Cândido de Oliveira e Claudia Scheuer, docente de fonoaudiologia do curso de medicina da USP.


Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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