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REFLEXÃO


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urbanidade
01/03/2006
Os foliões de Deus

O padre Rosalvino Moreno estava com uma sóbria bata branca, dessas usadas por antigos professores. À sua volta, mulheres seminuas -algumas delas quase totalmente nuas-, travestis exuberantemente fantasiados, em meio a milhares de foliões sacudindo ao som da bateria de escola de samba. Rosalvino parecia à vontade e mostrava-se indiferente à paisagem humana.

Mas se entregava à música, cantando e levantando os braços, em cima de um carro alegórico da Unidos do Peruche, sábado à noite, no sambódromo. Naquele clima descontraído e irreverente, perguntaram-lhe como se sentia enfiado naquele "desfile de tentações". Bem-humorado, respondeu: "Deus não me deixa ver".

O Carnaval faz parte da vida de Rosalvino -aliás, encontrou nessa festa a solução de alguns de seus problemas. Há 16 anos, ele desenvolve projetos educacionais para crianças e jovens na zona leste. Não sabia como atingir um grupo de crianças e jovens mais arredios e violentos, alguns integrando gangues. Não queriam saber de estudar e não tinham interesse na maioria das atividades educativas oferecidas. Surgiu então a idéia de criar a Escola de Samba Dom Bosco. "A isca funcionou", orgulha-se.

Com o tempo, o grupo foi crescendo, conseguiu juntar centenas de foliões e passaram a desfilar no sambódromo em categorias inferiores. Era o suficiente para mobilizar crianças e jovens, entregando-se disciplinadamente aos ensaios. "Foi possível, a partir disso, trabalhar com eles o prazer do aprendizado, a harmonia, a importância do trabalho em grupo, da cooperação e da disciplina."

A idéia não era exatamente apreciada por seus superiores hierárquicos da Igreja Católica. Chegaram inclusive a recomendar que deixasse os projetos carnavalescos, cujos ritmos e vestimentas não se coadunariam com os princípios religiosos. Diplomaticamente, Rosalvino mostrou como aquela experiência tinha, para aqueles jovens, uma espécie de dom divino. Não recebeu a aprovação, mas, pelo menos, ninguém mais o incomodou.

Devido à sua atuação na zona leste, Rosalvino foi convidado a sair, no sábado passado, num dos carros da Unidos do Peruche, cujo tema era o "Encontro com a comunidade". Ele acenava a muitos dos passistas a seu lado, muitos dos quais tinham sido seus alunos.

Um desses ex-alunos é a madrinha da bateria da Peruche, que, trajada "a rigor", naquele sábado, veio, suada e sorrindo, abraçar Rosalvino. No dia seguinte, ela desfilaria na Dom Bosco. Mas prometia adaptar-se às circunstâncias. "Lá, não vou pelada", brincou.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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