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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
13/11/2006
Como matar um jovem

A redução de nossa selvageria dependerá da disseminação de instrumentos para manter o jovem se capacitando

Professor de medicina da Universidade de São Paulo, Dario Birolini tem 69 anos, 45 dos quais dedicados a operar vítimas de traumas. Suas mesas cirúrgicas se transformaram, nessas mais de quatro décadas, em uma espécie de tradução das estatísticas da violência urbana: por lá passam pacientes esfaqueados, deformados por pauladas e perfurados por bala. Até mesmo ele está surpreso com o estado dos corpos que, nos últimos anos, têm chegado ao pronto-socorro do Hospital das Clínicas. "Tenho visto jovens com toda a região pélvica destruída." Diariamente, na cidade de São Paulo, um motociclista morre e outros 25 são feridos, muitos deles obrigados a se submeter a várias cirurgias e dolorosos tratamentos. A maioria torna-se inválida. A síntese da maior bomba social brasileira está nas mãos do professor Dario Birolini. Por isso, cada vez mais se terá de prestar atenção em debates como os que ocorreram quase clandestinamente, na semana passada, em Brasília, sobre a juventude e o trabalho.

Na cidade de São Paulo existem 150 mil motoboys percorrendo, em média, 100 km por dia, numa carga horária de dez horas. Como recebem por encomenda entregue, quanto mais correm, mais ganham. As empresas não se interessam em saber das condições em que são levadas suas encomendas. Desde que cheguem, tudo bem. As autoridades não se sentem aptas para fiscalizar. Para os cidadãos comuns, o motoboy não é mais do que uma ameaça ao retrovisor dos seus veículos. Uma modalidade de subemprego, os motoboys e seus acidentes são o reflexo da juventude marginalizada, a partir da qual se medirá o sucesso ou o fracasso do novo mandato de Lula. Só se pode, afinal, entender esses seres dirigindo em situações tão arriscadas quando olhamos a informação do Dieese de que 45,5% dos brasileiros entre 16 a 24 anos estão desempregados. Tais indicadores são muito piores entre os jovens de baixa renda. Detalhando um pouco mais, apenas no Distrito Federal e nas regiões metropolitanas de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife e Salvador, temos 3,2 milhões de desempregados nessa faixa etária. Entre 16 e 24 anos de idade, são 35 milhões de brasileiros cujo desemprego é de 25%, o dobro da média nacional. Apimentem-se esses dados lembrando que quase 18% dos brasileiros entre 15 e 17 anos estão fora da escola, a maioria vivendo nas chamadas áreas de risco -assim podemos ter pistas sobre por que motivo o assassinato é, em várias cidades brasileiras, a principal causa de morte entre jovens.

Esses números conferem importância às propostas, lançadas na semana passada, em Brasília, durante encontro com especialistas, sobre como evitar que os jovens caiam na marginalidade. Quanto mais tempo se retiver o aluno na escola e mais lhe oferecer ensino profissionalizante, respeitando as vocações locais, maior a chance de inserção no mercado de trabalho. O grau de empregabilidade dos egressos dos cursos públicos tecnológicos, em São Paulo, é de 95%. "Há vários setores que simplesmente não encontram mão-de-obra qualificada", afirma a secretária de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, Maria Helena Guimarães. A Petrobras, por exemplo, ainda não sabe onde buscar os trabalhadores para tocar seus bilionários projetos de extração de gás na bacia de Santos -e isso ocorre em várias outras cadeias produtivas do país.

A redução de nossa selvageria vai depender da disseminação dos mais variados instrumentos para manter o jovem se capacitando para alguma profissão. É inacreditável como anda devagar a aplicação da lei da aprendizagem, que poderia criar, no país, mais de 1 milhão de vagas. Ou como os parcos programas para a juventude são fragmentados, separando programas de renda, atividades culturais, ensino e geração de renda. E, pior do que tudo, como o ensino médio público está desaparelhado. Apenas se vê a gravidade dessas carências nos corpos deformados nas mesas cirúrgicas do professor Dario ou na facilidade de arregimentação do crime organizado.

PS - Está saindo até o final do mês um selo de qualidade, conferido pela CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) para as empresas de motofrete ou diretamente para os motoboys. Para ganhar o certificado, que não é obrigatório, questões sobre segurança terão de ser respondidas. Estão previstas auditorias permanentes. Empresas que não usarem esse selo na hora de fazer suas entregas podem jogar no lixo qualquer pretensão de se apresentarem como socialmente responsáveis -afinal serão cúmplices do morticínio de jovens.

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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