A redução
de nossa selvageria dependerá da disseminação
de instrumentos para manter o jovem se capacitando
Professor de medicina da Universidade de São Paulo,
Dario Birolini tem 69 anos, 45 dos quais dedicados a operar
vítimas de traumas. Suas mesas cirúrgicas se
transformaram, nessas mais de quatro décadas, em uma
espécie de tradução das estatísticas
da violência urbana: por lá passam pacientes
esfaqueados, deformados por pauladas e perfurados por bala.
Até mesmo ele está surpreso com o estado dos
corpos que, nos últimos anos, têm chegado ao
pronto-socorro do Hospital das Clínicas. "Tenho
visto jovens com toda a região pélvica destruída."
Diariamente, na cidade de São Paulo, um motociclista
morre e outros 25 são feridos, muitos deles obrigados
a se submeter a várias cirurgias e dolorosos tratamentos.
A maioria torna-se inválida. A síntese da maior
bomba social brasileira está nas mãos do professor
Dario Birolini. Por isso, cada vez mais se terá de
prestar atenção em debates como os que ocorreram
quase clandestinamente, na semana passada, em Brasília,
sobre a juventude e o trabalho.
Na cidade de São Paulo existem 150 mil motoboys percorrendo,
em média, 100 km por dia, numa carga horária
de dez horas. Como recebem por encomenda entregue, quanto
mais correm, mais ganham. As empresas não se interessam
em saber das condições em que são levadas
suas encomendas. Desde que cheguem, tudo bem. As autoridades
não se sentem aptas para fiscalizar. Para os cidadãos
comuns, o motoboy não é mais do que uma ameaça
ao retrovisor dos seus veículos. Uma modalidade de
subemprego, os motoboys e seus acidentes são o reflexo
da juventude marginalizada, a partir da qual se medirá
o sucesso ou o fracasso do novo mandato de Lula. Só
se pode, afinal, entender esses seres dirigindo em situações
tão arriscadas quando olhamos a informação
do Dieese de que 45,5% dos brasileiros entre 16 a 24 anos
estão desempregados. Tais indicadores são muito
piores entre os jovens de baixa renda. Detalhando um pouco
mais, apenas no Distrito Federal e nas regiões metropolitanas
de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife
e Salvador, temos 3,2 milhões de desempregados nessa
faixa etária. Entre 16 e 24 anos de idade, são
35 milhões de brasileiros cujo desemprego é
de 25%, o dobro da média nacional. Apimentem-se esses
dados lembrando que quase 18% dos brasileiros entre 15 e 17
anos estão fora da escola, a maioria vivendo nas chamadas
áreas de risco -assim podemos ter pistas sobre por
que motivo o assassinato é, em várias cidades
brasileiras, a principal causa de morte entre jovens.
Esses números conferem importância às
propostas, lançadas na semana passada, em Brasília,
durante encontro com especialistas, sobre como evitar que
os jovens caiam na marginalidade. Quanto mais tempo se retiver
o aluno na escola e mais lhe oferecer ensino profissionalizante,
respeitando as vocações locais, maior a chance
de inserção no mercado de trabalho. O grau de
empregabilidade dos egressos dos cursos públicos tecnológicos,
em São Paulo, é de 95%. "Há vários
setores que simplesmente não encontram mão-de-obra
qualificada", afirma a secretária de Ciência
e Tecnologia do Estado de São Paulo, Maria Helena Guimarães.
A Petrobras, por exemplo, ainda não sabe onde buscar
os trabalhadores para tocar seus bilionários projetos
de extração de gás na bacia de Santos
-e isso ocorre em várias outras cadeias produtivas
do país.
A redução de nossa selvageria vai depender
da disseminação dos mais variados instrumentos
para manter o jovem se capacitando para alguma profissão.
É inacreditável como anda devagar a aplicação
da lei da aprendizagem, que poderia criar, no país,
mais de 1 milhão de vagas. Ou como os parcos programas
para a juventude são fragmentados, separando programas
de renda, atividades culturais, ensino e geração
de renda. E, pior do que tudo, como o ensino médio
público está desaparelhado. Apenas se vê
a gravidade dessas carências nos corpos deformados nas
mesas cirúrgicas do professor Dario ou na facilidade
de arregimentação do crime organizado.
PS - Está saindo até o final do mês um
selo de qualidade, conferido pela CET (Companhia de Engenharia
de Tráfego) para as empresas de motofrete ou diretamente
para os motoboys. Para ganhar o certificado, que não
é obrigatório, questões sobre segurança
terão de ser respondidas. Estão previstas auditorias
permanentes. Empresas que não usarem esse selo na hora
de fazer suas entregas podem jogar no lixo qualquer pretensão
de se apresentarem como socialmente responsáveis -afinal
serão cúmplices do morticínio de jovens.
Coluna
originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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