Morador de uma das mais violentas
comunidades de Salvador, chamada (sem ironia), de Bairro da
Paz, Daniel resolveu participar de sua primeira experiência
cultural: uma peça de teatro para denunciar a violência.
Há quatro anos, ele começou a participar de
uma experiência, orientada pela ONG Cipó, em
que jovens, apoiados por profissionais, criariam uma peça
sobre cidadania para exibir em Salvador, especialmente para
o público jovem e vítima da marginalidade.
A experiência artística o ajudou a se conhecer
e a entender a degradação que o cercava. Descobriu
suas potencialidade, mas não conseguia fugir do círculo
do desemprego. Vivia de bicos e se candidatava a todas as
vagas possíveis. Sem condições de se
sustentar, acabou por abandonar a peça, mas, de vez
em quando, ia ver os espetáculos de seus colegas. Dizia
que era sua conexão com uma espécie de utopia.
No dia 30 de setembro, à noite, ele estava entusiasmo
pelo encerramento da peça, que, nos últimos
quatro anos, foi exibida para cerca de 25 mil pessoas, sempre
acompanhada de bate-papos sobre as fragilidades da cidadania.
Despediu-se de todos, voltou para casa e, de manhã,
quando andava de bicicleta para a obra em que fazia um bico,
foi assassinado. Naquele mesmo dia, por coincidência,
saiu o resultado de um concurso _fora aceito para trabalhar
como estagiário numa repartição pública.
No dia 1º deste mês, durante o enterro, os amigos
cantaram a música-tema da peça: "Eu tenho
um sonho. E tenho medo. Eu vivo o meu medo da hora que acordo
até a hora de dormir. Então eu encontro meu
sonho. (...) No meu sonho, ninguém me inveja, ninguém
me ameaça, ninguém me bate, ninguém me
mata. Eu não quero morrer antes da hora. Antes de ser
tudo o que eu desejo ser".
Assim terminou o último ato de Daniel _nome de um
profeta judeu que denunciava a violência e as injustiças
na Babilônia.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Sinapse.
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