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moradia
10/08/2004
Primeira favela carioca com título de propriedade vive dias de valorização

Cada vez que o carteiro aparece, cresce a expectativa dos moradores da Quinta do Caju, na Zona Norte do Rio. Eles vêm recebendo por semana 50 cartas, em média, para comparecer à associação de moradores local. Motivo: dar andamento no processo de regularização de suas casas. A Quinta do Caju é a primeira comunidade do Rio de Janeiro a ter direito ao título de moradia. O que já fez os preços dos imóveis dobrarem de valor.

Ao todo, serão beneficiadas 2.460 pessoas. Elas são parte da etapa final de um processo que teve início nos anos 60, mas só caminhou mais concretamente nos últimos oito anos, com a implantação do projeto Favela-Bairro na comunidade.

Na Associação de Moradores da Quinta do Caju, representantes da prefeitura se encarregam de checar as informações do cadastro geral de moradores, levantado em 1996. Os dados servem como base para a avaliação dos valores a serem pagos pelo registro dos títulos que serão enviados ao cartório de Registro Geral de Imóveis. Os títulos serão concedido através das secretarias municipais de Habitação e de Urbanismo.

A presidente da associação de moradores Iraydes Pinheiro Henriques, de 60 anos, já recebeu sua carta e sabe quanto pagará: R$ 2 mil. Ela acha o valor alto, mas explica os critérios. “Depende da área, se é considerada nobre, comercial ou mais carente, o que faz o metro quadrado variar entre R$ 2 e R$ 19. No meu caso, por morar na Rua Circular, que é a principal do Caju, e por já possuir um imóvel fora daqui, pago um valor mais elevado. Mas há casas que terão que pagar até R$ 4 mil, e os comerciantes, R$ 5 mil”, fala.

Azulejos azuis
Os carnês para o pagamento dos registros devem chegar no final de setembro. Tudo pode ser parcelado em até 60 meses, mas as escrituras só serão entregues depois das taxas estarem devidamente pagas. Dona Iraydes explica, mas não concorda. “Não acho justo. Nós, moradores, não somos invasores e fizemos muito aqui. Acho que essas escrituras deviam ser de graça. Além disso, por aqui, quase todo mundo é idoso, vive de aposentadoria e vai ter dificuldades em pagar, mesmo parcelando”, reclama.

Dona Dulcinéia de Castilo Silva, de 84 anos, ainda não recebeu sua carta, mas aguarda ansiosa para ter o título da propriedade em que reside com o segundo marido, Valdir Louza, de 73 anos. Ela mora na Rua Circular, uma das três que formam a comunidade. Sua casa – ou pelo menos parte dela – é uma das quatro ou cinco que ainda resistem na madeira original em que foram erguidas as primeiras construções na ocupação inicial da região, no início do século XX.

Tudo foi pintado em azul, como boa parte das moradias por ali. Tal como os azulejos azuis e brancos que recobrem algumas fachadas, isso também é resultado da forte herança portuguesa em toda a comunidade.

Dona Dulcinéia se orgulha do lugar onde mora porque, diferentemente de outras favelas, o sossego por ali é total. “A gente dorme tranquilo, de janela aberta”, diz. Ela lembra ainda da praia que existia a poucos metros de sua casa, aterrada para dar lugar a outras moradias: “A gente tomava banho de mar e era muito bom”.

Como ela, Dona Iraydes e boa parte dos moradores não trocam suas casas na Quinta por nenhuma outra. “Aqui sempre foi caro. E agora, quando o processo todo for finalizado, as vendas serão feitas com escritura definitiva e não mais através de documento da associação de moradores. Se meses atrás, se comprava uma casa aqui por R$ 35 mil, R$ 40 mil, hoje, custam quase o dobro. A minha não entrego nem por R$ 100 mil”, argumenta.

Não sem razão. Iraydes se orgulha da sala de 25m2, dos cinco quartos, três banheiros, uma enorme cozinha, duas áreas cobertas, terraço e é uma das poucas que conta com garagem. “Minha mãe dizia que daqui só pro cemitério. Eu digo a mesma coisa”, jura.

O português Frederico Fradique Rodrigues Teixeira, 68 anos, e sua esposa Glória de Almeida Santos, de 63, também não pensam em deixar a Quinta do Caju. Eles vão pagar R$ 117 pelo registro de sua casa, em duas vezes. Ao contrário de quem acha caro o valor do registro, Glória prefere pagar e pôr fim àquele processo tão longo. “O importante é ver as coisas legalizadas, tudo direitinho no papel. Aqui era só barro vermelho, tinha valas e um monte de coisas que foram melhoradas. O título garante tudo o que os moradores fizeram”, diz.

Mas é a história de moradores ainda mais antigos, como Dona Dulcinéia, que ilustra como foi a ocupação da Quinta do Caju. Ela foi uma das funcionárias da fábrica de trens que funcionava onde hoje opera o Parque de Eletrônica da Aeronáutica. Dona Dulcinéia trabalhava no setor de estofamentos e recebeu, como os demais operários, a permissão para ocupar a casa de madeira em que mora até hoje. “Quando vim pra cá, tinha 18 anos. Tudo isso aqui era uma área livre, cheia de pés de caju. O nome veio daí”, conta.

Proibido tijolo
A presidente da associação de moradores conhece bem a história. “Quando minha mãe nasceu, em 1915, os funcionários da fábrica de trens já moravam aqui e os pescadores que vieram de Póvoa do Varzim, em Portugal, no começo do século passado, ocupavam a área próxima ao Porto do Caju. Entre anos 30 e 40, quando a fábrica faliu tudo passou para a União. Foi também quando houve uma ocupação mais intensa”, conta.

Foi mais ou menos nessa época, que Thomaz Fernandes Pinheiro, pai de Dona Iraydes, resolveu se fixar no lugar. “Antes, a gente morava de aluguel num terreno ao lado do Parque da Aeronáutica. Como havia comprado o lote aqui, meu pai construiu um barraco de madeira porque não se podia fazer nada em alvenaria”, fala Iraydes. Foi o desejo de melhorar a casa em que a família vivia que deu início à longa luta pela posse do terreno.

A proibição de obras em alvenaria se traduzia na ronda dos fiscais federais que, volta e meia, apareciam pela Quinta e nas cartas que os moradores recebiam regularmente, lembrando que o terreno pertencia à União e que a qualquer momento eles poderiam ter que deixar o local.

Em 1961, quando as visitas dos fiscais federais começaram a se tornar mais espaçadas, Thomaz resolveu burlar a proibição e erguer paredes de tijolos. “A primeira casa de alvenaria foi a nossa. O que animou o pessoal a fazer outras”, lembra Iraydes. Foi também o que levou o pai a tentar legalizar a situação. “Ele não se conformava em ter adquirido um terreno, pagar taxas à União e não ter a posse legal do lote”, conta. Seu Thomaz tanto fez que terminou recebendo intimação para abandonar o local. “Era a época do regime militar”, explica Iraydes.

Seu Thomaz conseguiu permanecer onde estava, mas novas tentativas de legalização foram suspensas até que, depois de sua morte, Iraydes resolveu entrar para a recém-criada, à época, associação de moradores. “Em 1988, entrei como tesoureira, e em 1990 me elegi presidente com a bandeira da legalização”, conta. A partir daí, Iraydes foi atrás de autoridades, políticos e quem pudesse ajudar no processo. “Como trabalhava na Fundação Nacional de Saúde e fazia vários cursos em Brasília, aproveitava a viagem para isso”, lembra.

Onze viagens à Brasília
Entre idas e vindas, Iraydes chegou a ir onze vezes a Brasília e até a tomar café da manhã com o ex-presidente Collor. “Ele assinou o processo para começar a legalização da área. Mas toda vez que esse processo andava caía um ministro. No dia em que consegui que a ministra Zélia Cardoso assinasse um documento importante, à noite ela foi exonerada e o processo para a gaveta”, conta Iraydes.

Dona Floripes Rodrigues Rocha Moreira, de 67 anos e quarta geração dos Rocha Moreira na Quinta do Caju, acompanhou de perto todo empenho de Iraydes. “Ela foi uma batalhadora. Sem ela a gente não tinha conseguido nada. Acho que tiramos a sorte grande. Agora, depois de tanto sacrifício, fico feliz por saber que vamos ter nosso título”, elogia.

Colônia reformada
Muitos, no entanto, não acreditavam. “Me chamavam de maluca”, lembra Iraydes. De tanto percorrer repartições públicas, em 1996, a associação conseguiu trazer o Favela-Bairro para a comunidade e com ele, muitas mudanças. “Muita coisa já havia sido feita pelos moradores, que formavam comissões e reinvindicavam melhorias à região administrativa, pediam aos políticos. Mas o Favela-Bairro remodelou toda a Quinta do Caju. E, principalmente, retomou todo processo de regularização do lotes”, conta Iraydes.

Foi assim que, entre 1996 e 2000, foi realizada a metragem dos terrenos, o cadastramento dos moradores, um censo local e várias obras. Numa delas, os moradores das antigas palafitas à beira do Porto do Caju foram removidos para prédios populares erguidos nas proximidades.

A comunidade ganhou também uma creche e uma fábrica de gelo - que ainda não entrou em funcionamento -, e teve a colônia de pescadores reformada. Em junho deste ano, todos receberam o “habite-se”, numa cerimônia no Palácio da Cidade. “Muitos diziam que toda esta história era um filme que não tinha fim. Estavam enganados”, diz Iraydes, com um sorriso de vitória.

CLÁUDIO PEREIRA
do site Viva Favela

 
 
 

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