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26/02/2006 - 09h31

Erros do Cruzado custaram 10 anos, diz Bacha

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GUILHERME BARROS
Colunista da Folha de S.Paulo

No dia 28 deste mês, comemoram-se 20 anos do lançamento do maior plano posto em prática no Brasil antes do Real, o Plano Cruzado, o primeiro de vários criados para tentar matar a inflação. Na época, o presidente era José Sarney, o primeiro civil depois de 21 anos de ditadura militar.

Sofrendo a ameaça de inflação crescente e explosiva e às vésperas de uma crise política, Sarney adota um plano de congelamento de preços instituindo o cruzado como novo padrão monetário.

Engendrado por um grupo de economistas oriundos da PUC do Rio, o plano serviu para legitimar Sarney na chefia do governo, já que ele tinha herdado o poder em março de 1985 depois da tragédia ocorrida com Tancredo Neves.

No início, o plano foi um sucesso. A inflação baixou substancialmente e os salários recuperaram o poder aquisitivo. O presidente Sarney e o então ministro da Fazenda, Dílson Funaro, se tornaram heróis da Nova República.

O plano resistiu nove meses. Em novembro, seis dias depois de o governo ter alcançado uma esmagadora vitória nas urnas, o plano foi substituído pelo Cruzado 2, que decretou o fim do congelamento de preços. Em um só dia, os preços subiram até 120%, como no caso dos telefones e da energia. De milagroso, o Cruzado se torna o maior plano de estelionato eleitoral da história do país.

Edmar Bacha, 64, que na época do Cruzado presidia o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), foi um dos economistas com participação marcante na elaboração do plano, um dos chamados "pais do Cruzado".

Desse grupo faziam parte Dílson Funaro, então ministro da Fazenda; João Sayad, ministro do Planejamento e quem levou a idéia do plano a Sarney; André Lara Resende, Pérsio Arida, Andrea Calabi, Chico Lopes, Eduardo Modiano, João Manoel Cardoso de Mello e Luiz Gonzaga Belluzzo. O grupo dos nove (excluindo Funaro).

Primeiro da equipe a deixar o governo, em 22 de novembro, um dia depois do anúncio do Cruzado 2, Bacha lamenta o fato de o plano não ter dado certo. "Foi realmente uma tragédia não termos conseguido estabilizar a economia em 1986", diz ele. "Ele nos custou dez anos de estagnação."

Tucano de carteirinha, Bacha não poupa críticas ao governo Lula. Sua opinião sobre o atual governo é devastadora. "Por onde se olha é um governo de trapalhões do ponto de vista da política econômica de longo prazo", diz.

A seguir, a entrevista de Bacha sobre os 20 anos do Cruzado.

Folha - O que deu errado no Plano Cruzado?

Edmar Bacha - Toda a equipe econômica estava muito imbuída dessa idéia de que, durante o período da ditadura, tinha havido um arrocho salarial muito grande. Naquele ímpeto da redemocratização, havia uma preocupação muito grande de fazer um plano que, em princípio, fosse neutro do ponto de vista de salário. Na verdade, o plano acabou sendo extremamente generoso em termos do reajuste salarial. Foi dado um abono salarial de 8% e um aumento de 16% no salário mínimo.

Em cima disso ainda se criou o gatilho salarial [a cada 20% de inflação, havia reajuste]. Foi aí que o plano se perdeu de vez. Em qualquer processo de ajuste, há sempre o risco de uma inflação corretiva, até por causa da compressão dos preços. Esse processo de inflação corretiva temporária estava impedido pela existência do gatilho. Qualquer inflação que houvesse batia no gatilho. Foi isso o que acabou com o plano.

Folha - Como o sr. define o Plano Cruzado passados 20 anos?

Bacha - A nossa reentrada na democracia foi muito traumática, com a morte do Tancredo e o Sarney assumindo com muito pouca legitimação política, já que não era um homem do PMDB. O Plano Cruzado serviu para dar legitimidade política ao governo Sarney. Se foi bom, se foi ruim, o fato é que sem o Cruzado dificilmente Sarney teria se sustentado. Pouco antes do plano o então senador Fernando Henrique Cardoso deu uma entrevista com críticas pesadas ao governo, e até hoje essa entrevista é causa de um certo desentendimento entre os dois.

Folha - Quais as lições do plano?

Bacha - A lição mais importante é que ele poderia ter dado certo. Em Israel, o plano deu certo. Deu certo porque, mesmo tendo tido problemas parecidos com os nossos, eles conseguiram fazer um ajuste posterior negociado. Nós, tínhamos dificuldade de negociação aqui, em razão de estarmos saindo da ditadura, a sociedade estava muito mal organizada.

Em Israel houve uma negociação entre os trabalhadores e os empresários que possibilitou perda relativa dos ganhos salariais no começo do plano para poder fazer o ajuste. O Cruzado tinha todos aqueles mecanismos de conversão dos salários, com os abonos e o gatilho. O Cruzado preservou muito esses automatismos característicos do processo de alta inflação, quando tínhamos de nos livrar deles. Ou se negocia ou se faz uma recessão. Não houve isso.

Folha - Quando o sr. sentiu que o plano tinha acabado?

Bacha - No livro que vai lançar, Sarney diz que a primeira vez em que ele sentiu que o plano tinha acabado foi quando ele cruzou comigo e com o Sayad quando estávamos saindo de uma sala durante a reunião em Carajás [maio de 1986]. O Sarney me ouviu falando para o Sayad que o plano tinha ido para o espaço.

Folha - O que o levou a concluir que o plano tinha acabado?

Bacha - Além do índice de preços, eu tinha no IBGE o cálculo do índice da quantidade de produtos. O índice de preços é feito a partir de uma amostra de quantidade de bens. O índice mostrava que os bens estavam desaparecendo das prateleiras. Era óbvio que estava havendo uma escassez crescente e muito forte de bens.

A oferta estava definhando. A procura estava extremamente forte não só por causa desses abusos salariais todos como por causa também do fim do imposto inflacionário. O plano provocou uma explosão de demanda com o congelamento. Em maio já era patente esse excesso de demanda. O que precisava ser feito era adotar mecanismos corretivos. O congelamento estava ficando cada vez mais difícil de ser mantido.

Folha - A reunião de Carajás não adiantou muita coisa.

Bacha - Não. O Sarney estava obviamente fascinado com o sucesso do plano. O Funaro também. Ele era o herói nacional. A escolha de Carajás foi extremamente simbólica. O plano era só um detalhe. O importante eram todos aqueles enormes projetos de investimento de expansão na capacidade produtiva que viriam.

Logo depois teve o Cruzadinho (que criou o empréstimo compulsório sobre a gasolina), quando se decidiu criar dois índices de inflação, um sem expurgo e outro com expurgo para servir de base para os reajuste salariais. Nesse momento eu quis sair do governo. A minha relação com a equipe econômica ficou muito abalada, tanto com a Fazenda como com Sayad. Eu praticamente me desliguei da equipe econômica.

Eu deixei o governo no Cruzado 2, lançado dia 21 de novembro. No dia 22, eu fui a Brasília com o André Lara Resende e me lembro até que, durante a viagem, no avião, eu tentei convencê-lo a sair comigo. Ele disse que queria ficar mais um pouco. Quando fui falar com o Sayad já apresentei de cara a carta de demissão e falei que ele deveria sair comigo. Ele não quis sair. Fui o primeiro a sair, no dia 22 de novembro.

Folha - O que se tira do Cruzado?

Bacha - É preciso ter mecanismos corretivos à mão para um plano desses dar certo. Você nunca acerta na primeira. Aquela idéia do Collor de matar no primeiro tiro não é verdade. Historicamente, todas as experiências bem-sucedidas, inclusive a israelense, precisaram de ao menos dois tiros. Tem que haver a possibilidade de aplicar mecanismos corretivos. Naquela época do Cruzado, parecia totalmente impossível. Seria como voltar ao arrocho salarial da ditadura.

Eu me lembro de que passei boa parte do tempo, no início do plano, tentando provar que o Cruzado não era recessivo. Havia pouca consciência no quadro político sobre política de estabilização.

Folha - O sr. acha que, agora, o país aprendeu? Já se pode dizer que alcançamos a estabilidade?

Bacha - O país aprendeu, mas não precisava ter dez anos de penúria e de estagnação. Foi realmente uma tragédia o fato de nós não termos conseguido estabilizar a economia brasileira em 1986. Custou dez anos. Custo altíssimo.

Folha - O sr. acha que a ausência de ajuste fiscal atrapalhou?

Bacha - Não acho que foi isso que danou o Cruzado. Se você olhar a dívida líquida do setor público, é claro que teria sido muito útil se o governo tivesse tido um superávit maior para poder compensar a força da demanda que vinha do setor privado. Mas, quando você olha os dados da dívida líquida do setor público, vê que não houve um problema de insustentabilidade fiscal.

A dívida termina 1985 em 50% do PIB e 1986 em 45% do PIB. Vê-se que não era um problema de insustentabilidade fiscal. É claro que teria sido muito melhor e teria facilitado as coisas se o governo tivesse um superávit fiscal considerável, como Israel, mas esse não foi o problema. O problema foi não ter tido condições de acionar mecanismos corretivos.

Folha - Como o sr. vê o governo Lula?

Bacha - Por onde você olha é um governo de trapalhões do ponto de vista da política econômica de longo prazo. É incapaz tanto administrativa quanto ideologicamente de ativar um novo modelo de crescimento. Além de terem promovido uma carga tributária altíssima, eles acabaram com as privatizações, não conseguem fazer as concessões nem tirar as PPPs do lugar. Não conseguem realizar nem os projetos-piloto de investimento liberados pelo FMI.

Só conseguiram liberar um terço da verba que foi aprovada com o FMI. Além disso, ainda estatizaram as áreas vendidas nos leilões de energia. Não conseguem sequer aprovar a Lei de Saneamento no Congresso. O PT é incapaz de fazer uma política macroeconômica de longo prazo.

Folha - Mas os resultados econômicos são melhores que os do governo FHC.

Bacha - Mas com o vento a favor soprando de fora. O pior é que o vento vai continuar soprando a favor e nós vamos continuar com a âncora travando a economia.

Folha - Mesmo com a perspectiva de queda de juros neste ano?

Bacha - Acho até que vai melhorar um pouquinho, mas a inflação vai subir em 2007.

Folha - O que o governo precisa fazer?

Bacha - O mais importante é destravar o processo de crescimento para habilitar essa economia a expandir a produção. O crescimento está travado pelo alto custo do capital, pela carga tributária elevadíssima e por esse conjunto de ações antiinvestimentos que este governo petista adota. Isso chama-se incapacidade administrativa.

Folha - Serra ou Alckmin?

Bacha - O chuchu pode vir na forma de picolé ou de suflê. Ambos são muito bons.

Especial
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