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17/12/2002 - 03h27

Edith do Prato revela origens da música de S. Amaro da Purificação

ISRAEL DO VALE
free-lance para a Folha

A longa fila de cadeiras no corredor de entrada já deixa entrever: aquele é lugar de gente festeira. Sentada na mesa da sala de jantar, na contraluz do sol de fim de tarde trazido pela porta que leva ao quintal, dona Edith desfia lembranças dos 76 anos que a separam da "casinha de samba" erguida nos fundos do terreno estreito e comprido, que atravessa um quarteirão de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, a hora e meia de Salvador.

Naquele pedaço de terra, a cem metros do que anos depois seria a morada de comadre Canô (cujos filhos Caetano Veloso e Maria Bethânia inscreveriam a cidade no mapa cultural do país), a menina de dez anos começou a exercitar com uma cuia de queijo o estilo que seria aperfeiçoado num prato de cerâmica e a conduz agora ao primeiro disco, aos 86 de vida.

Costureira ocasional e festeira inveterada, Edith Oliveira Nogueira, mais conhecida como Dona Edith do Prato, tem história entrelaçada à do clã Veloso. Basta dizer que chegou a ser mãe de leite do quinto filho de Canô, Caetano, apresentado ao mundo cinco dias antes de seu primogênito.
A retribuição viria pela via artística. Edith faria sua estréia nos palcos, no teatro Castro Alves, dividindo os holofotes com Caetano, Chico Buarque e MP4. "Quando vi aquela multidão fiquei assombrada... Mas depois deu tudo certo", lembra. "Eles me abraçaram tanto, agradeceram, que eu me animei a continuar."

Do filho de leite viria também a primeira chance de gravar. Trinta anos atrás, o disco "Araçá Azul", de Caetano, já registraria, sob o codinome Edith Oliveira, a voz sibilante de dona Edith na faixa de abertura, "Viola, Meu Bem", e em "Sugar Cane Fields Forever".

A técnica do prato-e-faca, item básico nos sambas-de-roda e nas chulas, vem sendo exercitada desde muito antes, ainda na meninice, na tal casinha de samba (uma lona estendida sobre quatro estacas). "Eu viajava muito para tocar, mesmo ainda menina", diz. "Me convidavam para tocar em aniversário, nos carurus. Meu pai via que eu gostava e deixava." Foi nas festas que surgiram os dois maridos de Dona Edith, ambos já mortos. "Namorei muito, meu filho."

As paredes da casa desfilam imagens de Caetano e Bethânia, em fotos ou desenhos. Só perdem na devoção para o pequeno quarto em que Dona Edith guarda imagens de entidades do candomblé, num altar principal. A surpresa, quando se cruza a soleira de mármore da sala envolta em meia-luz, só aumenta quando se percebe atrás da porta uma razoável confraria de santos católicos. Filha de Oxum Maré, Dona Edith não se furta ao sincretismo explícito. Questionada se é católica, diz sem titubear: "Graças a Deus".

O CD "Dona Edith do Prato - Vozes da Purificação" foi lançado em setembro com show em Santo Amaro e só chegou a Salvador há duas semanas, em apresentação fechada para convidados, na abertura do 4º Mercado Cultural. Vozes da Purificação é o nome do coro das oito cantoras septuagenárias que a acompanham no disco e nos shows.

Até agora, foi tudo -bem pouco para o que é. Produzido por J. Velloso (filho de Clara Maria, filha mais velha de Dona Canô), o disco remete, via samba-de-roda, aos primeiros passos do gênero-símbolo tupiniquim, antes mesmo de ser lavrada sua certidão de nascimento.

Anos antes daquele que entraria para a história como o primeiro samba gravado ("Pelo Telefone", em 1917), João da Bahiana (filho de uma santamarense, Tia Preciliana, como informa o produtor e pesquisador Hermínio Bello de Carvalho no encarte do disco) já exercitava o prato-e-faca nos terreiros das tias baianas radicadas no Rio. É creditada a ele, diga-se, a introdução no samba de outro instrumento comum ao samba-de-roda, o pandeiro.

De aparência frágil, mas sempre implacável nas idéias, Dona Canô, hoje com 95 anos, conta que teria sido sondada pelo neto J. Velloso para gravar o disco que ganhou corpo pela voz de Dona Edith -com participações de Caetano Veloso, Maria Bethânia e outros.

"Pastoril, roda de samba, igreja: em tudo eu já cantei", conta Dona Canô. "Hoje já não estou com muita voz e não tenho mais fôlego", diz. "Mesmo no coral da igreja, só vou para fazer número." Este mesmo coral, com integrantes dos 18 aos 95 anos, abastece parte do coro das Vozes da Purificação.

"O disco ficou muito bonito", exalta Dona Canô. "Todos esses sambas eu sei", diz ela, citada na letra de "Santo Amaro Ê Ê", uma das 14 faixas do disco. Reza a letra: "Eu trabalho o ano inteiro/ na estiva de São Paulo/ só pra passar fevereiro em Santo Amaro". "Aqui nasci, aqui me criei, aqui estou. Não tem lugar melhor", diz Dona Edith. As visitas que se cheguem. O prato e a faca guardados numa bolsinha acolchoada sobre o guarda-roupa estão sempre à espera, assim como as cadeiras. Para começar a festa, é o bastante.
 

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