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11/08/2000 - 05h30

"A Humanidade ": "Antipolicial" vai atrás da origem da vida

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FRANCESCA ANGIOLILLO, da Folha de S.Paulo

Da sinopse, poderia-se dizer que "A Humanidade" (99) é um policial. Começa com um homem andando pesadamente numa campina, se aproximando do horror: o crime sexual que, a partir dali, terá de resolver -a violação e assassinato de uma menina.

Mas o filme do francês Bruno Dumont que chega hoje a São Paulo, após ter colhido palmas em Cannes 99 e ter sido exibido pela Mostra de SP no mesmo ano, contraria a concepção usual do gênero. Aqui, quase nada se move.

O homem é Pharaon De Winter, policial da cidadezinha de Bailleul, norte da França -onde, aliás, Dumont nasceu, em 1958, e onde rodou seu primeiro longa, "A Vida de Jesus" (97). Pharaon tem, como vários tiras de Hollywood, um passado nebuloso a assombrá-lo. De resto, é distante de seus congêneres americanos -e das personagens e fatos comezinhos de sua rotina.

Os personagens (inclusive e principalmente Pharaon) têm reações, por vezes, mais próximas da animalidade do que da humanidade. Os diálogos são poucos.

A violência que sobra após o choque inicial é a da crueza que Dumont adota, buscando o que há de primitivo no humano, e que levou a cortes e à retirada do filme de cartaz na Itália -ao que o cineasta reagiu com alívio: "O cinema é uma arte do corte, mas antes, não depois".

Duas das cenas cortadas são fundamentais. A primeira enfoca a vagina da menina morta. A segunda, inspirada na tela "A Origem do Mundo" (1866), de Gustave Courbet, mostra a de Domino, vizinha de Pharaon, por quem o policial é apaixonado, mas que namora um motorista de ônibus. Para Dumont (filósofo de formação), o corpo é o início de tudo.

No fim, vemos que a história é só um pretexto, como o diretor e roteirista disse à Folha após a projeção de "A Humanidade" no 4º Festival de Cinema Francês de Acapulco, em 99. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Folha - Os personagens de "A Humanidade" são lacônicos; seus gestos são mais notáveis que as falas. Isso faz parte de um estilo seu?
Bruno Dumont -
Cada vez mais, a realidade não me interessa. Não tenho vontade de ver gente que conversa normalmente. Eu acho que a ausência de palavras é voltar ao fundamental, que é o corpo, que está no começo de tudo. Não quer dizer que não acredite no discurso. Mas penso que o cinema vive um momento primordial, de confronto com a questão: "Quem somos nós?". E a única maneira de compreender a realidade é indo à margem dela. Para isso, precisamos de ritmo, de mudança, do outro. Pharaon é o outro, e nos outros vemos a nós mesmos.

Folha - Esteticamente, porém, o filme é extremamente real. Os atores têm cara de "gente normal", o ambiente não é glamouroso...
Dumont -
Sim, é muito comum... Há uma aparência de realidade: as ruas, as pessoas... Mas o irreal não se filma: eu não posso filmar o divino ou o interior das pessoas. Eu me sirvo do ordinário, do visível para contar as coisas. A imagem não é mais do que uma passagem para ir além. E quem passa é o espectador: eu lhe dou uma imagem inacabada a ser interpretada.

Folha - O sr. se fixa muitas vezes sobre partes dos corpos, em especial mãos. É uma maneira de representar a aproximação do outro?
Dumont -
Sim, com as mãos é que se pega o outro. Mas Pharaon cheira muito, ele não pega. Porque tocar já requer mais coragem. Ele olha muito antes. E cheira.

Folha - Não é muito humano usar o olfato dessa maneira.
Dumont -
Não, é muito animal; ao mesmo tempo, quando fazemos amor com alguém, a gente cheira. Mas Pharaon o faz na rua, em situações incomuns. Ele precisa sentir o corpo do outro.

Folha - O sr. ressalta algumas características humanas muito próximas da animalidade. Há também muitas cenas de sexo, nuas e cruas. É um filme muito físico, não?
Dumont -
Muito. É um filme que quer se consagrar a isso exclusivamente. Ao mesmo tempo, é metafísico. Além do que vemos, há outras coisas que acontecem, mas que pertencem ao espectador.

Folha - Ao comparar a visão da vagina da menina morta à de Domino, que relação buscava?
Dumont -
Acho que a necessidade de amor é uma necessidade de fusão. Ao mesmo tempo, a violação é como a fusão -pela morte. Então esses dois planos se sustentam mutuamente. Enquanto a primeira cena é o fim do mundo, a coisa mais abjeta que se possa ver -e que, no entanto, se deva ver-, quando aponto a câmera para a vagina de Domino, é sobretudo para mostrar que é por aquilo que ela chora: pelo seu sexo. E quando procuramos o lugar da câmera, buscamos o mais expressivo. A câmera lá é toda a possibilidade de humanidade, que penetra, é a sexualidade, é a vida... É muito carregado de significado.

Folha - O sr. é um autor. Considera adaptar outros autores?
Dumont -
Não. Acho que essa é uma arte total. No momento não imagino filmar uma adaptação.

Folha - Ao que parece, porém, a história não é o primordial.
Dumont -
Não. A história não é tão importante, não deve ocupar um espaço exagerado, mas permitir que os protagonistas se relacionem. Como a vida, ela é um pretexto para as relações entre uns e outros. Isso é a vida, e o cinema não fala de outra coisa. Fala de quem se deseja, de quem se detesta, de quem se encontra, se deixa. A história, acho, é mínima.

Folha - O sr. tem uma visão pessimista da humanidade?
Dumont -
Não, não é pessimista, mas não se nota de imediato pelo filme porque não é um cinema imediatista. O importante é a impressão que vai deixar, mesmo se vemos coisas que são difíceis, violentas, duras... Para mim, o cinema é um despertar. Eu vi filmes na minha vida que me despertaram. Não é porque vemos um filme feliz que ficamos felizes, nós somos muito complicados. Precisamos ver filmes que dêem vontade de chorar, de amar; é isso a humanidade. Ir ao cinema por diversão, simplesmente, não é verdadeiro.

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