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02/09/2003 - 03h36

García Márquez conta como infância foi definitiva na construção de estilo

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SYLVIA COLOMBO
editora-adjunta da Ilustrada

Até hoje Gabriel García Márquez tem medo do escuro. Quando era menino, diz, era à noite que os dramáticos presságios de sua avó se concretizavam. "Muitas vezes pressenti, em minhas insônias do mundo inteiro, que eu também arrasto a condenação daquela casa mítica num mundo feliz onde morríamos todas as noites."

A casa a que García Márquez, 75, se refere é aquela na qual passou sua infância, com os avós e um monte de tias. Uma casa sempre cheia de mulheres religiosas e de homens contadores de histórias de guerra. Onde "cada santo tinha um quarto e cada quarto tinha um morto". Gabo viveu ali até os oito anos. Desse período, diz ter tirado inspiração para quase toda sua ficção. "Não consigo imaginar um meio familiar mais propício para a minha vocação que aquela casa lunática."

Quando "Viver para Contar", primeiro volume da biografia do escritor colombiano, tem início, Gabo tem então 22 anos e acaba de ser convocado pela mãe para viajar com ela até Aracataca, sua cidade natal, no norte da Colômbia, para ajudá-la a vender "a casa". Ao pôr de novo os pés no povoado "transfigurado por aquele pó invisível e ardente que enganava a vista", Gabo é invadido por uma nostalgia que, incrustada para sempre em sua personalidade, semearia quase toda a sua obra premiada com o Nobel em 1982.

Lançado nos países de língua hispânica em outubro de 2002, "Viver para Contar" alcançou a marca de 1,5 milhão de cópias vendidas e chega agora ao Brasil.

Ao comentá-lo para o diário espanhol "El País", o argentino Tomás Eloy Martinez disse: "As memórias de Gabo são tão fulgurantes quanto suas novelas, mas têm a vantagem de que voltam a contá-las desde o lado da realidade".

É possível identificar no relato a origem de inúmeras passagens de seus livros. Como por exemplo a história de amor de seus pais, repleta de obstruções e dificuldades, que inspirou "O Amor nos Tempos do Cólera" (1985), ou ainda muitas das descrições da casa de Aracataca e de seus habitantes, que surgem transfiguradas em "Cem Anos de Solidão" (1967).

Se por um lado a biografia nos ajuda a entender como Gabo criou seu estilo narrativo único, por outro é desconcertante descobrir que a mágica que envolve seus personagens é não menos que pura realidade, ainda que traduzida por um olhar especial.

É no mínimo surpreendente ficar sabendo que a incrível Rebeca (de "Cem Anos"), a menina que se alimentava de terra e da cal das paredes que raspava com as próprias unhas, não é fruto da imaginação alucinada de Gabo, mas sim inspira-se no comportamento de um de seus dez irmãos, a pequena e amedrontada Margot.

O relato nos mostra como o colombiano lapidou seu estilo a partir de um contato muito próximo à tradição oral da isolada região caribenha onde cresceu. Desde pequeno, encantava-se com as notícias que chegavam por meio do canto de acordeonistas, das conversas de forasteiros e dos relatos dos ex-combatentes das inúmeras guerras daquele tempo.

Aracataca era "um país sem fronteiras", como define Gabo. Recebera fugitivos da ditadura de Juan Vicente Gómez, da Venezuela, da colônia penal francesa da Ilha do Diabo, nas Guianas, e os americanos vindos para explorar o cultivo da banana e que ajudaram a construir um ambiente mágico para Gabo e seus colegas, com seus carros e roupas coloridas, brinquedos e um sem-número de inovações tecnológicas.

Mas nada foi mais determinante para a sua relação com a ficção do que a influência da avó. Religiosa e crédula, tinha explicações sobrenaturais para tudo e relatava as coisas mais absurdas da forma mais simples e natural.

A narrativa deixa de lado o tom nostálgico e assume ares dramáticos quando o autor trata do despertar de sua consciência política. Aconteceu no dia 9 de abril de 1948, com o assassinato do líder esquerdista Jorge Eliecér Gaitán e a agitação que prosseguiu nos dias seguintes, quando Bogotá foi assolada por choques entre manifestantes e o Exército e houve saques, mortes e muita confusão.

Ainda neste volume, vemos Gabo publicar contos no jornal "El Espectador", dar os primeiros passos como jornalista e encontrar aquela que seria sua mulher. O livro termina com sua partida para a Europa, em 1955.

Inicialmente, Gabo pensara no título "Vivir para Contarlo" (Viver para Contá-lo), depois mudou para "Vivir para Contarla" (Viver para Contá-la), pois queria enfatizar a idéia de que contava a partir de sua memória e não se limitava simplesmente a relatar o tempo vivido. Reforçou isso na abertura: "A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la".

Na tradução brasileira, esse importante detalhe, infelizmente, se perdeu. "Em português, soaria muito pouco natural o título "Viver para Contá-la'", explica a editora Luciana Villas-Boas.

Hoje, o escritor trabalha nos dois próximos volumes dessas memórias e se trata de um câncer linfático, detectado em 1999, dividindo seu tempo entre Los Angeles e a Cidade do México.

VIVER PARA CONTAR
Autor:
Gabriel García Márquez
Tradução: Eric Nepomuceno
Lançamento: Record
Quanto: R$ 55 (474 págs.)
 

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