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04/10/2003 - 06h24

Coutinho sintetiza moderno cinema brasileiro

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TIAGO MATA MACHADO
crítico da Folha

O percurso da obra de Eduardo Coutinho, tema da retrospectiva que estréia no Centro Cultural Banco do Brasil, sintetiza a evolução (dialógica) do cinema moderno brasileiro. Esse percurso, sempre norteado por um aprimoramento do diálogo entre o cineasta-intelectual de classe média e o povo, já se encontra sintetizado, por sua vez, em "Cabra Marcado para Morrer", filme iniciado em 1964 e finalizado 20 anos depois.

Não tivesse sido interrompido pelo golpe militar de 64, "Cabra" talvez não passasse hoje de uma curiosidade de cinemateca, mais uma datada produção do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, com seus defeitos característicos: visão extrínseca da cultura popular, roteiros didáticos, esquemáticos e sociologizantes. "Eu não sabia dirigir os atores, o diálogo era banal, e o roteiro, cheio de "barrigas", convencional, com personagens muito tipificados", diria mais tarde Coutinho sobre a ficção meio neo-realista que começara a rodar com os companheiros de CPC em torno da morte do líder da Liga Camponesa de Sapé.

Morte que prefigurou o golpe. Enquanto a ditadura brasileira passava de envergonhada a escancarada, a euforia utópica do intelectual nacional-popular cedia lugar ao desencanto. Frustrado em seu devir revolucionário, o intelectual mergulha na crise. Sua relação com o povo torna-se conflitante. É o momento de "Terra em Transe" e de um Glauber desesperado com a constatação de que o povo não passava de uma idealização sua. É o momento da "crise das totalizações históricas", segundo as insubstituíveis palavras de Ismail Xavier.

Mas a reconciliação não tarda: por volta dos anos 70, os cineastas brasileiros passam a compreender que sua tarefa não é impor uma visão de mundo ao povo ou, como diziam, despertar-lhe a consciência, mas simplesmente ceder-lhe a palavra, possibilitar-lhe a expressão. O cinema nacional passa a exprimir uma visão menos extrínseca da cultura popular. É por essa época que Coutinho migra para a televisão, iniciando o seu namoro com o documentário (e o cinema-direto), tendo ao lado o câmera Dib Lutfi, o homem-grua do cinema novo.

É a época de um certo ideal perdido da TV brasileira, de um "Globo Repórter" que produzia filmes como "Teodorico, o Imperador dos Sertões", de Coutinho e Lufti, e "Wilsinho da Galiléia", de João Batista de Andrade.

No início dos anos 80, renovado por sua experiência como repórter televisivo e pelo início da abertura política do país, Coutinho resolve enfrentar os fantasmas de seu projeto inacabado. Leva aos sobreviventes os poucos fragmentos do filme original que conseguiu recuperar e tenta recompor com eles uma história que, a essa altura, já é tanto do cineasta quanto das personagens. Uma história que, erigida sobre uma elipse de 20 anos de ditadura, já não é senão a do próprio país.

Coutinho já não olha pelo olho da câmera (com o olhar extrínseco dos tempos de CPC), mas diretamente, dentro do filme, nos olhos dos (outros) personagens, dialogando com eles de igual para igual. Tendo vivenciado ele próprio a opressão política, o intelectual pode se sentir enfim irmanado ao "povo oprimido".

O método que Coutinho passa a desenvolver a partir daí não visa senão a retomar essa experiência. De "Santa Marta - Duas Semanas no Morro" (1985) a "Babilônia 2000", de "Boca do Lixo" (1993) a "Santo Forte" (1999), ele só faz aprimorar sua abordagem, em busca de diálogos mais justos (para ambas as partes), de encontros mais ricos. Se em "Santa Marta", talvez mais interessado na comunidade do que nos indivíduos, o cineasta protagoniza encontros mais curtos, mais editados, em seus filmes mais recentes a ciência e a paciência de Coutinho extraem das pessoas puros atos de fala. Lição de simplicidade, tanto ética quanto estética, sua obra é a história de uma geração que soube restituir a palavra ao povo.
 

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