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24/10/2003 - 13h07

"Picasso chinês" continua obscuro no Brasil 20 anos após sua morte

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GUILHERME GORGULHO
da Folha Online

Reverenciado internacionalmente como o mais famoso pintor chinês do século 20 e dono de uma incrível história de vida, Chang Dai-Chien (1899-1983) ainda é um desconhecido no país que o acolheu por quase 20 anos.

O destino do artista conhecido como o "Picasso da China" cruzou o Brasil em 1954, quando ele, contrariado com os rumos de sua pátria após a Revolução Comunista, decidiu se exilar na cidade de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, depois de rápidas passagens pelo Japão, Hong Kong, Índia e Argentina.

Mestre excêntrico, tradicionalista nos pincéis e na aparência --com sua longa túnica, barba comprida e um cajado sempre à mão, à moda dos letrados chineses--, o pintor, poeta, calígrafo e colecionador chinês construiu seu próprio paraíso no Brasil.

Depois de comprar uma área no bairro de Capela do Ribeirão (atual distrito de Taiaçupeba), Chang mobilizou uma grande quantidade de recursos na edificação de seu refúgio brasileiro, erguendo prédios em estilo chinês e produzindo uma grandiosa obra paisagística que incluía um lago e um jardim oriental.

Apesar de ter realizado exposições em galerias e museus brasileiros durante sua estada no país, Chang manteve-se retirado em seu éden, que só deixava para viagens aos Estados Unidos e Europa, onde expunha seus trabalhos altamente valorizados.

Vinte anos depois de sua morte, seus trabalhos restringem-se a coleções particulares do país, sendo que, em muitos dos museus onde Chang mostrou sua arte nas década de 60 e 70, nada restou para testemunhar sua passagem.

"Ele também foi responsável, porque sempre viveu segregado. Eu acho que ele nunca percebeu que estava fora da China. Continuava no Brasil como se ainda estivesse na terra dele. Não aprendeu a língua e dificilmente ele aparecia em algum lugar", afirma José Roberto Teixeira Leite, professor aposentado da Unicamp e autor do livro "A China no Brasil" (Editora da Unicamp, 1999), que dedica um capítulo especial ao artista.

De fato, Chang Dai-Chien nunca quis aprender o português, que usava apenas em raras ocasiões para manter alguma comunicação com empregados e, mesmo tendo conhecimentos de japonês, o pintor negava-se a se expressar em um idioma que não fosse o seu.

"Ele nunca se interessou por outra língua. Nos Estados Unidos ele também não se esforçava para falar inglês. Morou por muito tempo no Japão também e não se esforçou para aprender japonês", explica Lee Chang Sing Pei, a única filha de Chang que ainda mora em Mogi das Cruzes. Apenas mais um dos irmãos dela mora no país, na cidade paulista de Indaiatuba.

"Ele gostava daqui porque a terra é boa, a gente é boa. Assim como nós, ele se apegou ao lugar. Com montanhas por todos os lados, (...) essa paisagem [de Taiaçupeba] lembrava muito sua terra natal", explica a chinesa Judy Shen Lee, que mora no país desde a década de 1950 e foi um dos quatro discípulos que Chang teve durante sua passagem pelo Brasil. O pintor viveu no Brasil até 1970, quando se mudou definitivamente para a Califórnia, mas voltou em algumas ocasiões até 1973.

Sem destaque

Num momento em que a China ganha destaque internacional depois de se tornar o terceiro país do mundo a enviar um homem para o espaço e registrar índices de crescimento econômico espantosos, o mesmo não ocorre no setor das artes. Realmente, a arte chinesa nunca teve muito destaque nos espaços culturais brasileiros. Os artistas plásticos chineses valorizam muito a tradição como reverência aos mestres do passado, contrariamente ao conceito ocidental que vê no "novo" um motor para a produção cultural.

"Grande parte disso [o desconhecimento de sua obra no Brasil] foi devido à situação isolada em que ele viveu. E outra parte foi devido à incompreensão que nós temos para com o povo chinês", opina Teixeira Leite.

O jornalista americano Carl Nagin, que vive na Califórnia, produziu um documentário sobre Chang Dai-Chien --"Abode of Illusion: The Life and Art of Chang Dai Chien" (1993)-- e está escrevendo uma biografia sobre o pintor, que pretende lançar nos próximos dois anos.

Nagin realizou uma intensa pesquisa sobre a vida e obra do artista, tendo visitado vários dos locais pelos quais ele passou sua vida. Ele entrevistou amigos, parentes e especialistas e estudou antigos jornais chineses para buscar novas fontes de informação.

"Eu acho que isso provavelmente tem mais a ver com o quão proeminente a cultura chinesa é no Brasil. A pintura chinesa, com exceção da Europa e de alguns círculos de museus, não é muito conhecida fora da China. Mesmo no Ocidente, com certeza, é mais conhecida hoje do que era há 30 anos atrás, mas a compreensão desta tradição é pobremente conhecida fora da China, e isso é uma realidade na América do Sul", afirma Nagin.

Já para o crítico de arte João Spinelli, o brasileiro sempre esteve aberto para assimilar novas informações culturais. "Eu não acho que o Brasil foi míope para com ele, senão teria sido também para com outros artistas asiáticos", diz ele.

Para Spinelli, a erudição e o tradicionalismo de Chang foram empecilhos para a compreensão de sua arte no Brasil. O crítico, autor do livro "Arte Nipo-Brasileira" (editora Takano, 2001), defende que vários artistas japoneses tiveram seus trabalhos reconhecidos no Brasil porque "somavam valores ocidentais aos orientais".

Obra esquecida

Chang expôs quadros na 6ª Bienal Internacional de Artes em São Paulo (1961), mostrou suas obras no Museu de Arte de São Paulo (1966), no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (1966) e no Museu de Arte Moderna de São Paulo (1971). Além disso, ele exibiu quadros em galerias paulistanas como Atrium (1968), Chelsea (1971) e A Galeria (1973), mas praticamente nada permaneceu no país depois de sua partida.

Suas valiosas obras estão em grandes museus dos Estados Unidos, Europa e Ásia, mas, no Brasil, apenas alguns amigos e parentes possuem obras de Chang Dai-Chien, e as pinturas que já estiveram em museus do país estão praticamente perdidas.

A reportagem da Folha Online localizou uma obra com características parecidas com as de um trabalho de Chang no Rio Grande do Sul, mas sem a identificação precisa. Uma pintura de Chang intitulada "Passeio ao Longo do Rio Apreciando as Flores das Ameixas" foi adquirida pelo empresário Assis Chateaubriand e doada, em 1966, ao Museu de Porto Alegre.

Na capital gaúcha, a Pinacoteca Ruben Berta localizou em sua reserva técnica um quadro, de 58,5 cm por 47 cm, com o título "Paisagem Primaveril". Sua autoria não está cadastrada nos registros do acervo, sendo que constam apenas uma referência de que se trata de um artista chinês e, no canto inferior direito e no seu verso, alguns ideogramas chineses. Em uma tradução livre, as inscrições indicam uma grande coincidência temática em relação ao título da pintura original.

A probabilidade de que a obra seja de Chang Dai-Chien é grande, já que a coleção da pinacoteca foi trazida a Porto Alegre pelo presidente dos Diários e Emissoras Associados, Assis Chateaubriand. Inicialmente localizada no Morro Santa Tereza, junto aos estúdios da Rádio Farroupilha e da TV Piratini, a coleção foi doada em 1971 para a Prefeitura de Porto Alegre, atual dona da obra.

O Masp (Museu de Arte de São Paulo) recebeu a doação de uma obra do artista chinês no dia 29 de março de 1966, durante cerimônia de inauguração de uma exposição com 22 trabalhos dele. O departamento que cuida do acervo do Masp informou que "Paisagem Suíça" foi doada ao Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, na cidade de Olinda, como parte do projeto de museus regionais desenvolvido por Chateaubriand na década de 60. A direção do MAC de Olinda, no entanto, não tem registro da obra em questão.

Uma rara oportunidade de apreciar a arte do renomado artista oriental no país aconteceu no ano passado, quando 11 de seus quadros foram mostrados na exposição "Tesouros da China", no Museu de Arte Brasileira da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado), em São Paulo. Mesmo tendo produzido muito durante sua passagem pelo solo brasileiro, todas as pinturas desta mostra vieram do Museu de Artes Asiáticas Guimet da França.

Para se ter uma idéia de quão valorizados são seus trabalhos, no próximo domingo (26), a casa de leilões Christie's vai leiloar em Hong Kong um lote de pinturas contemporâneas chinesas que inclui 21 obras de Chang Dai-Chien. Entre elas está "Mist Covered Mountain" (1970), de 146 cm por 206 cm, avaliada entre US$ 190 mil e US$ 320 mil (R$ 540 mil e R$ 915 mil).

Outro leilão com trabalhos de Chang acontece na segunda-feira (27), também em Hong Kong, promovido pela casa Sotheby's, oferecendo 25 pinturas do artista. O destaque do leilão é uma obra intitulada "Lotus in The Breeze" (1962), 193 cm por 92,5 cm, avaliada entre US$ 85 mil e US$ 100 mil (aproximadamente R$ 240 mil e R$ 285 mil).

Sem recordações

Na cidade brasileira que escolheu para viver, a memória do artista foi apagada pelo tempo. A chácara que Chang Dai-Chien construiu em Mogi das Cruzes foi destruída e o terreno inundado pela represa do rio Jundiaí. A casa em que viveu por alguns anos no centro da cidade antes de se mudar para a zona rural abriga hoje uma clínica médica. Sua passagem pela cidade resiste apenas na memória daqueles que o conheceram.

A Prefeitura de Mogi das Cruzes concorda que sua passagem não foi devidamente reverenciada no Brasil, mas informa que pretende resgatá-la de alguma forma.

"Pretendemos promover uma semana com artistas importantes para a cidade e estamos lutando para realizar a 2ª Bienal do Alto Tietê em abril ou maio do ano que vem. Nestes eventos, poderíamos contar com obras de Chang Dai-Chien. O projeto para a construção do centro cultural de Mogi das Cruzes também prevê a criação de uma pinacoteca, e esperamos ter obras de Chang em nosso acervo", afirma o secretário de Cultura e Meio Ambiente de Mogi das Cruzes, Jurandyr Ferraz de Campos.

A casa em que Chang morou em Taiwan --para onde se mudou em 1976 depois de morar por alguns anos na Califórnia-- foi doada ao National Palace Museum e abriga hoje exposições que lembram sua arte e vida.

Tradição e inovação

Chang Dai-Chien foi um dos artistas que mais soube incorporar os valores da pintura tradicional chinesa em sua obra. Trabalhando com papel de arroz, os temas mais recorrentes em suas obras eram paisagens e elementos da natureza. Para direcionar melhor as habilidades que vinha desenvolvendo desde tenra idade, Chang foi estudar com grandes artistas chineses como Tseng Hsi (1861-1930) e Li Juiching (1867-1920).

Em seus prolíficos 84 anos de vida, o artista realizou um extenso estudo sobre a história das artes plásticas chinesas. Seu excepcional conhecimento sobre obras de grandes mestres --principalmente do século 17, como Shih-tao e Pa-ta (Chu Ta)-- foi produto de anos de estudos, baseado, primordialmente, na reprodução de obras.

Chang apurou sua técnica a tal ponto que ainda chega a causar polêmica e tirar o sono de acadêmicos e especialistas que tentam identificar possíveis falsificações produzidas pelo mestre. Para um pintor chinês, copiar ou criar uma brilhante cópia de um mestre do passado é visto como uma grande realização, demostrando domínio da tradição.

Mas, em meados da década de 60, Chang começou a desenvolver um estilo inovador, com fortes referências expressionistas, apontada por muitos como decorrente de uma dificuldade visual. Sofrendo de diabetes, ele foi atingido por um glaucoma, e a partir daí, sua arte aproximou-se do abstracionismo. Atualmente, as obras desta sua fase final são as mais valorizadas no mercado de arte oriental.

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