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25/12/2003 - 04h02

USP organiza arquivo com despachos de órgãos de censura

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VALMIR SANTOS
da Folha de S.Paulo

Crepúsculo do regime militar (1964-85). O crítico teatral Miroel Silveira está apreensivo. Toma conhecimento de um arquivo prestes a virar cinzas, tesouro guardado na Divisão de Diversões Públicas da Secretaria da Segurança Pública do Estado.

Ele corre até o 2º ou 3º andar do prédio número 534 da alameda Cleveland, em Campos Elíseos, centro de São Paulo. Chega a tempo de salvar pilhas de livros em uma sala. "Se levar tudo hoje, pode ficar com eles", diz um dos responsáveis, ainda sob a batuta dos militares. Silveira, ato contínuo, consegue um caminhão e leva 450 volumes para o Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Essa operação resgate, realizada em 1985, conforme a lenda uspiana (não se sabe ao certo como Silveira granjeou a coleção), impediu que 6.137 processos, encadernados em livros de capa dura, lombada verde-escura, fossem atirados ao fogo. São despachos de órgãos de censura à produção teatral paulista de 1939 a 1968.

Jornalista, escritor, ex-crítico da Folha (1947-57), professor do departamento de artes cênicas da ECA-USP, o santista Silveira (1914-88) tinha consciência da raridade dos documentos.

Até a morte, manteve-os como que ocultos em sua sala, no antigo prédio do departamento de artes cênicas. O arquivo permaneceria desconhecido até o início dos anos 90, quando a transferência do departamento para outro prédio da Cidade Universitária revelou o conteúdo "escondido".

Remetidos à biblioteca da ECA, os volumes eram consultados esporadicamente por pesquisadores, mas seguiam "adormecidos". As coisas mudaram faz dois anos e meio, quando a socióloga Maria Cristina Castilho Costa encampou a coordenação científica do projeto "Arquivo Miroel Silveira -0A Censura em Cena", com aval da diretora da biblioteca, Bárbara Júlia Leitão. Uma equipe interdisciplinar trabalha na organização, catalogação e análise dos calhamaços que perpassam 29 anos dos governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e generais.

Silveira era visitante assíduo do arquivo na Divisão de Diversões Públicas. Peças de origem italiana, árabe, portuguesa ou lituana, por exemplo, encenadas em escolas ou clubes, não importa, também eram submetidas à censura.

O fantasma não estava para brincadeira: em 1942, até o palhaço Abelardo Pinto, o Piolin, teve de suprimir a palavra "amante" da sua comédia "As Duas Angélicas", que versava sobre adultério e incluía personagens militares.

Em setembro de 1967, o grupo União pede o certificado de censura para "Navalha na Carne", na histórica primeira montagem da peça de Plínio Marcos com Paulo Villaça, Ruthinéa de Moraes e Edgar Gurgel Aranha, sob direção de Jairo Arco e Flexa. O censor Álvaro Adamo libera com restrições, para maiores de 21 anos, e manda cortar expressões como "porra" (citada cinco vezes) e "mineteiro" (que gosta de satisfazer mulheres com sexo oral).

Está tudo lá registrado em papéis ofícios, carimbados com os órgãos responsáveis, censores, produtores, ficha técnica, peça integral e os senões grifados ou circulados em lápis vermelho.

"Foi uma censura quase ingênua, medieval até, digamos assim, porque nominalista [questionava a validade da linguagem como meio para interpretar e expressar a realidade], tudo pelo exercício de poder", diz Costa, 51, abraçada ao seu "ouro em pó".
 

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