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13/03/2004
-
08h02
RODRIGO PETRONIO
free-lance para a Folha
Ao longo dos meses de julho e agosto de 1927, o escritor Mário de Andrade (1893-1945) encetou sua importante expedição à Amazônia, comentando-a em cartas. Mas devemos ter em mente que há um pouco de mistificação temperando seus comentários sobre essa região. Se ela, à exceção de Manaus, ainda tinha zonas absolutamente desconhecidas e milhares de quilômetros virgens, há que se levar em conta que já vinha sendo desbravada por viajantes desde o século 18.
Um desses aventureiros foi o francês La Condamine, que percorreu a região entre os anos de 1743 e 1744. Repetiu o trajeto de outros dois, Francisco de Orellana e Cristolbal de Acuña, descendo do Peru até Belém do Pará. Relatou tudo em um diário, que obteve ampla repercussão quando publicado, em 1745. Outra iniciativa dessa envergadura foi protagonizada pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, em 1783.
Em meio a essas vidas e obras, se encontra a vida do padre João Daniel (1722-1776) e seu monumental "Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas", que acaba de ser publicado na íntegra pela editora Contraponto, em parceria com a Prefeitura de Belém, com coordenação de Renata Gérard Bondin e prefácio elucidativo do historiador Vicente Salles. Trata-se, sem dúvida, da maior fonte de informações sobre a Amazônia de que dispomos.
João Daniel passou 16 anos, de 1741 a 1757, desempenhando atividades religiosas na região e colhendo informações detalhadas sobre sua geografia, fauna, flora, povos, costumes, organização, história e folclore, entre tantos outros aspectos relativos à vida dos missionários e às culturas locais. Deposto de seu cargo pela cruzada contra os jesuítas levada a cabo pelo Marquês de Pombal, passou outros 18 anos trabalhando essas informações, nos cárceres de Lisboa, até sua morte.
O fruto desses acidentes de sua vida é uma obra que não encontra par em termos de riqueza vocabular, minúcia descritiva e força imaginativa. Obra essa cujo percurso foi tão ou mais acidentado que sua vida. A primeira edição brasileira só vai ocorrer parcialmente, pelas mãos de Verhagen, no século 19. Depois, no século 20, são descobertos dois manuscritos: uma segunda versão da Parte Quinta e a Parte Sexta, e última, em uma biblioteca de Évora. É baseada em todas essas versões e correções necessárias que vem a público a presente edição, a mais completa até agora.
Os manuscritos de Daniel são divididos em seis partes, distribuídas meio a meio nos dois volumes e subdivididas em tratados, de acordo com as suas respectivas matérias. Pode-se dizer que ele começa pelas características mais ligadas à geografia, às plantas, aos animais, aos minerais e à história do Amazonas, passa depois à descrição das culturas indígenas e, no segundo volume, entra em aspectos relativos às missões, à agricultura, ao comércio, à indústria e aos engenhos, ou seja, aos traços mais complexos da organização social como um todo.
Difícil dar um curso a essa prosa caudalosa e reter o fluxo copioso de informações desse rio que é a obra de João Daniel. À guisa de roteiro, o leitor poderia se concentrar nas partes Primeira e Segunda, do primeiro volume, que tratam dos índios e da fauna, da flora e da história amazônicas. Depois, tomar as trilhas do segundo volume e enveredar pelos seus confins, na medida em que relatos e assuntos forem lhe apetecendo.
Traço que não se pode deixar de mencionar, entretanto, e que já vale a obra, é a presença das fábulas e do imaginário local, mesclado às mais pias crenças religiosas. É quando vemos emergir os homens-marinhos, espécies de homens-anfíbios, que vêm à noite nas redes dos pescadores para assombrá-los com seu canto, as estátuas de pedra de um lago mítico que petrifica quem nele se atreva entrar e a descrição da Pedra das Maravilhas, uma pedra que, como num leque furta-cor ou como no Aleph de Borges, traz todas as pedras preciosas dentro de si.
Em nenhum momento o autor duvida desses seres, quando muito relativiza a possibilidade de sua existência. Para o cristianismo, o mundo foi criado pelo Verbo. Para o pároco João Daniel, essa criação ainda não acabou nem nunca acabará, enquanto nos caiba dar seqüência a ela e sustentar sua leveza, por meio de nossos atos, criações e palavras.
Avaliação:![](http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/images/4_estrelas.gif)
Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas Vols. 1 e 2
Autor: padre João Daniel
Editora: Contraponto/Prefeitura de Belém do Pará
Quanto: R$ 45, cada volume (600 págs. e 640 págs.)
Obra reúne dados sobre geografia, povos e lendas amazônicas
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free-lance para a Folha
Ao longo dos meses de julho e agosto de 1927, o escritor Mário de Andrade (1893-1945) encetou sua importante expedição à Amazônia, comentando-a em cartas. Mas devemos ter em mente que há um pouco de mistificação temperando seus comentários sobre essa região. Se ela, à exceção de Manaus, ainda tinha zonas absolutamente desconhecidas e milhares de quilômetros virgens, há que se levar em conta que já vinha sendo desbravada por viajantes desde o século 18.
Um desses aventureiros foi o francês La Condamine, que percorreu a região entre os anos de 1743 e 1744. Repetiu o trajeto de outros dois, Francisco de Orellana e Cristolbal de Acuña, descendo do Peru até Belém do Pará. Relatou tudo em um diário, que obteve ampla repercussão quando publicado, em 1745. Outra iniciativa dessa envergadura foi protagonizada pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, em 1783.
Em meio a essas vidas e obras, se encontra a vida do padre João Daniel (1722-1776) e seu monumental "Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas", que acaba de ser publicado na íntegra pela editora Contraponto, em parceria com a Prefeitura de Belém, com coordenação de Renata Gérard Bondin e prefácio elucidativo do historiador Vicente Salles. Trata-se, sem dúvida, da maior fonte de informações sobre a Amazônia de que dispomos.
João Daniel passou 16 anos, de 1741 a 1757, desempenhando atividades religiosas na região e colhendo informações detalhadas sobre sua geografia, fauna, flora, povos, costumes, organização, história e folclore, entre tantos outros aspectos relativos à vida dos missionários e às culturas locais. Deposto de seu cargo pela cruzada contra os jesuítas levada a cabo pelo Marquês de Pombal, passou outros 18 anos trabalhando essas informações, nos cárceres de Lisboa, até sua morte.
O fruto desses acidentes de sua vida é uma obra que não encontra par em termos de riqueza vocabular, minúcia descritiva e força imaginativa. Obra essa cujo percurso foi tão ou mais acidentado que sua vida. A primeira edição brasileira só vai ocorrer parcialmente, pelas mãos de Verhagen, no século 19. Depois, no século 20, são descobertos dois manuscritos: uma segunda versão da Parte Quinta e a Parte Sexta, e última, em uma biblioteca de Évora. É baseada em todas essas versões e correções necessárias que vem a público a presente edição, a mais completa até agora.
Os manuscritos de Daniel são divididos em seis partes, distribuídas meio a meio nos dois volumes e subdivididas em tratados, de acordo com as suas respectivas matérias. Pode-se dizer que ele começa pelas características mais ligadas à geografia, às plantas, aos animais, aos minerais e à história do Amazonas, passa depois à descrição das culturas indígenas e, no segundo volume, entra em aspectos relativos às missões, à agricultura, ao comércio, à indústria e aos engenhos, ou seja, aos traços mais complexos da organização social como um todo.
Difícil dar um curso a essa prosa caudalosa e reter o fluxo copioso de informações desse rio que é a obra de João Daniel. À guisa de roteiro, o leitor poderia se concentrar nas partes Primeira e Segunda, do primeiro volume, que tratam dos índios e da fauna, da flora e da história amazônicas. Depois, tomar as trilhas do segundo volume e enveredar pelos seus confins, na medida em que relatos e assuntos forem lhe apetecendo.
Traço que não se pode deixar de mencionar, entretanto, e que já vale a obra, é a presença das fábulas e do imaginário local, mesclado às mais pias crenças religiosas. É quando vemos emergir os homens-marinhos, espécies de homens-anfíbios, que vêm à noite nas redes dos pescadores para assombrá-los com seu canto, as estátuas de pedra de um lago mítico que petrifica quem nele se atreva entrar e a descrição da Pedra das Maravilhas, uma pedra que, como num leque furta-cor ou como no Aleph de Borges, traz todas as pedras preciosas dentro de si.
Em nenhum momento o autor duvida desses seres, quando muito relativiza a possibilidade de sua existência. Para o cristianismo, o mundo foi criado pelo Verbo. Para o pároco João Daniel, essa criação ainda não acabou nem nunca acabará, enquanto nos caiba dar seqüência a ela e sustentar sua leveza, por meio de nossos atos, criações e palavras.
Avaliação:
![](http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/images/4_estrelas.gif)
Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas Vols. 1 e 2
Autor: padre João Daniel
Editora: Contraponto/Prefeitura de Belém do Pará
Quanto: R$ 45, cada volume (600 págs. e 640 págs.)
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