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11/08/2005 - 09h43

"A Menina Santa" entrelaça religião e sexualidade; filme estréia amanhã

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SILVANA ARANTES
da Folha de S.Paulo

A adolescente Amalia interrompe o passo na calçada. Pára para ver um show de música.

O homem de meia-idade se mistura aos espectadores, aproxima-se de Amalia, afasta o paletó da área da cintura e pressiona o seu corpo contra o dela.

Amalia sente o contato. Sem se virar, move a mão, em busca da mão do homem, que se afasta. De educação religiosa, Amalia (María Alché) vê o gesto do desconhecido como um pedido de ajuda.

Somente mais tarde ela descobrirá que ele é Jano (Carlos Belloso), um médico hospedado no hotel de sua família.

A atitude do homem e a reação da garota resumem a idéia central que a cineasta argentina Lucrecia Martel aplica ao seu segundo longa, "A Menina Santa", que estréia amanhã em São Paulo: "A definição de bem e mal é de uma absoluta inutilidade".

Para afastar da tela essa cisão, a diretora optou por uma fotografia sem claro/escuro. "Não queria que os rostos dos personagens fossem divididos em luz e sombra, para evitar essa assimilação fácil com 'o lado escuro da pessoa' ou com a idéia de que 'todos têm duas caras'."

Martel acredita que a desnecessidade da separação moral entre o bem e o mal está cada vez mais clara "nos dilemas trazidos pela guerra legal, respaldada pelo Estado, contra o terrorismo". Mas ela quis tratar do assunto "com temas pequenos, íntimos". Em sua obra, aliás, não há outra abordagem possível.

"Meu cinema tem como base minha experiência física. Meu corpo é a única geografia sobre a qual posso assentar meu pensamento, o único lugar que me serve de eixo. Mesmo que filmasse 'Alien 5', seria um pouco autobiográfico", afirma.

Não é preciso supor que a experiência de Amalia seja reflexo da biografia de Martel. A cineasta diz isso com todas as letras. "Digo por mim que uma adolescente, diante de uma atitude como esta [o assédio], pode perfeitamente não ter a atitude de sempre, de se virar e dar um soco."

Para Martel, "sobretudo nas primeiras vezes em que se sente, o desejo sexual é algo tão sobrenatural, tão acima da média das coisas que você sentiu até ali, que alguém como Amalia pode perfeitamente confundir essa sensação com algo divino".

Amalia é alguém que vive no interior da Argentina, assim como Martel, natural da Província de Salta, a 1.600 km de Buenos Aires.

A suposição da diferença (ou da individualidade) é algo que, segundo a cineasta, está fora do repertório moderno sobre a mulher. "Há todo um discurso sobre o que uma mulher deveria sentir frente a certas coisas. Um discurso que surgiu na tentativa de protegê-la, mas que, no fim, tenta igualar todas as mulheres na forma de perceber as coisas."

Quando "A Menina Santa" competiu pela Palma de Ouro no Festival de Cannes, no ano passado, a diretora ouviu que seu filme era um entre muitos a abordar o abuso sexual. Nem por isso ela se sentiu parte de um grupo.

A diretora acredita que "a impotência política que vivemos como cidadãos frente a um sistema econômico que parece ser administrado além da nossa vontade se manifesta no discurso privado como uma reflexão sobre o abuso de poder, do qual a pedofilia é uma forma clara".

O desacordo de Martel com a discussão sobre a pedofilia está em sua idéia de que "por esse discurso haver surgido de uma impotência histórica, ele também está se tornando limitado e estúpido. Um tema complexo é analisado pelo prisma do preconceito".

O que Martel exemplifica como carga de preconceito é a tendência a "generalizar sobre as emoções humanas", as quais, para ela, deveriam ser consideradas individualmente.

"Os discursos gerais sobre esse tema só servem para gerar intolerância e ações que me parecem perigosíssimas. Esse é um terreno [o das emoções humanas] em que a legislação não faz mais do que criar injustiças", diz.

"A Menina Santa" é co-produzido pelo diretor Pedro Almodóvar, cujo "Fale com Ela" embaralha a definição de estupro. Embora o espanhol seja o mestre da exacerbação, e Martel trabalhe na chave da contenção de meios, ela delineia o ponto de contato de ambos: "Para mim, uma das coisas mais extraordinárias no cinema de Almodóvar é que ele consegue ganhar a cumplicidade do espectador para algo a que, em geral, o público resiste muito --alterar o seu ponto de vista moral".

Em "A Menina Santa", Martel faz com que seus atores busquem a cumplicidade do espectador usando "apenas dois registros sonoros: o do sussurro, que é a linguagem do sexo, da intimidade, mas também a da fofoca e da mentira; e o do cumprimento social, em que tentamos não manifestar nenhuma emoção e agradar o outro, sendo muito civilizados".

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