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14/11/2006 - 09h27

Filósofo Roberto Machado relaciona teatro grego e filosofia moderna

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RAFAEL CARIELLO
da Folha de S.Paulo

O novo livro do filósofo Roberto Machado, 64, "O Nascimento do Trágico - De Schiller a Nietzsche" (Jorge Zahar Editor, 280 págs., R$ 38), dá o que pensar: sobre a filosofia moderna e sua relação com a tragédia grega, explicitamente, e, indiretamente, sobre a falta de criatividade de boa parte da filosofia brasileira.

O professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) afirma que, na modernidade, a tragédia deixa de ser apenas uma das espécies do teatro e passa a ser central para o modo como os filósofos entendem não só os dilemas do homem moderno mas também a própria constituição do mundo, do Ser.

"A questão da oposição, da contradição de princípios é um aspecto essencial dessa concepção ontológica da tragédia, isto é, da concepção de que a tragédia diz alguma coisa que tem a ver com o próprio ser ou com a totalidade dos entes, do que é, do que existe", afirma.

O que ele diz ter "ousado" fazer neste trabalho, ao abarcar um século de pensamento alemão, é tentar ser mais "extenso" que "profundo", marca segundo ele dos próprios filósofos estudados -e limite da filosofia brasileira.

Ele diz que o "modelo da USP" dos anos 60 --de resto em prática na maioria dos programas de pós-graduação em filosofia do país hoje-- privilegia a extrema especialização, o que cria dificuldades para que se pense criativamente. "Caímos numa perspectiva de especialistas num período, num autor, e até mesmo num livro."

FOLHA - Por que o trágico é um tema e um problema para os modernos? Por que se ocuparam dele a partir de Kant, mas parece ter sido um problema menor no período anterior, entre Descartes e Kant?

ROBERTO MACHADO - A posição que defendo em "O Nascimento do Trágico" é que só na modernidade --entendida como o período que começa com Kant-- houve uma reflexão sobre o trágico. Para isso, valorizei a diferença entre uma "poética da tragédia" que, inaugurada por Aristóteles, se impôs até o século 18 como um estudo formal, analítico e classificatório da poesia, e uma "filosofia do trágico" que, formulada por pensadores como Schelling, Hegel, Hölderlin, Schopenhauer e Nietzsche, elaborou uma reflexão sobre a essência do trágico a partir do conteúdo da tragédia. Minha preocupação foi mais apresentar o "como" do que o "porquê" dessa transformação. Tentei mostrar que isso se deve muito a Kant. Não que ele tenha sido um pensador do trágico, longe disso, mas sim que, logo após sua terceira "Crítica", onde se encontra a estética, que analisa o belo e o sublime, Schiller, que foi um grande kantiano, retomou a teoria do sublime e, a partir dela, pensou o trágico.

FOLHA - Dá para dizer que o que unifica esses pensadores é que neles há sempre dicotomias, ao mesmo tempo que não é em todos que há dialética?

MACHADO - Exatamente. A idéia que expus é que o trágico, a partir de Schelling, é sempre pensado ontologicamente. Mas fui além disso, defendendo que a questão da oposição, da contradição de princípios é um aspecto essencial dessa concepção ontológica da tragédia, isto é, da concepção de que a tragédia diz alguma coisa que tem a ver com o próprio ser, com a totalidade do que é, do que existe. Trata-se, portanto, sempre de princípios ontológicos que estão numa atitude antagônica, uma atitude de oposição. Acontece, porém, que esse antagonismo pode levar a uma harmonia, a um reconhecimento, a uma reconciliação, como é o caso em Schelling, Hegel e no primeiro Hölderlin, mas também pode levar a uma afirmação da dualidade ou da oposição, sem reconciliação dialética.

FOLHA - Pode-se dizer que o pensamento sobre o trágico é fundamental para todos esses filósofos, ou ele está em Hegel, por exemplo, mas não de maneira central?

MACHADO - É possível detectar duas posições a esse respeito. Em Schiller e Hölderlin, por exemplo, que são mais poetas e dramaturgos do que filósofos, há uma visão do trágico que faz parte da própria visão de mundo que eles têm. Já em Hegel, o trágico é um momento de um processo histórico que vai além do trágico. Ele situou a visão trágica numa perspectiva histórica. Isso começa a mudar com Schopenhauer, pois a respeito dele é possível falar já de uma visão de mundo trágica.

Essa relação entre trágico e tragédia vai explodir completamente em Nietzsche, quando ele elabora uma visão do trágico independente do teatro e da tragédia. Por isso, considero Nietzsche o ápice de todo esse processo de formação de uma visão trágica do mundo. No último período de sua filosofia, ele dirá: "Sou o primeiro filósofo trágico; os próprios gregos ainda foram moralistas". Isso significa um deslocamento da temática do trágico do campo da arte para a própria filosofia como uma forma de pensamento que elabora uma visão trágica do mundo.

Enquanto Schiller criou o trágico como um conflito entre os instintos e a liberdade, conflito que acarreta a afirmação da liberdade moral, apesar das condições mais adversas em que o ser humano se encontre, como em sua peça "Maria Stuart", Nietzsche usa a visão trágica do mundo como alternativa ética. O trágico, para ele, se torna uma afirmação integral da vida para além das oposições morais de bem e mal.

FOLHA - O sr. concorda que parece haver pouca criatividade filosófica no Brasil? Qual é a explicação possível para isso?

MACHADO - A pergunta é boa, mas exigiria uma resposta que não sei se sou capaz de dar. De todo modo, o que posso dizer é que o trabalho para esse livro foi muito formador. Porque fui capaz de comprovar, com relação a mim mesmo, uma coisa que considero uma deficiência dos estudos filosóficos no Brasil. Caímos numa perspectiva de especialistas num período, num autor, e até mesmo especialistas num livro.

O que me chama a atenção é que em geral as pessoas restringem o seu universo ao daquele filósofo eleito como um paradigma do que seja filosofar. E não se chega nem ao estudo daqueles com os quais ele tem uma relação profunda.

Uma grande lição que comprovei com esse estudo é que não se começa do nada. Não existe tábula rasa --sempre se pensa a partir do que outros pensaram. O interessante para mim, na leitura desses documentos sobre a tragédia e o trágico, foi a demonstração de que é sempre com pequenas reapropriações, com pequenas torções que, dentro de uma região de idéias já produzidas por outros, se chega a um pensamento novo, diferencial. Um bom exemplo disso é de como Schelling retoma a teoria do sublime de Schiller --profundamente marcada por Kant-- numa perspectiva metafísica.

Creio que uma das dificuldades da filosofia brasileira é que em geral abdicamos de pensar filosoficamente para fazer unicamente história da filosofia. A filosofia brasileira, mais ou menos até a década de 60, me parece ter sido marcada por um ensino doutrinário, aquele que privilegia um sistema filosófico como verdadeiro, o expõe como um conjunto de teses e situa, a partir dele, os outros sistemas como erro, desvio, ignorância.

Ora, com a importância que adquiriu a pós-graduação no Brasil, a partir do modelo da USP, para combater esse modelo, representado principalmente pelo tomismo, as pessoas se preocuparam menos em fazer filosofia do que em saber filosofia, em assimilar com rigor a filosofia dos outros. O conhecimento dos filósofos é importante, e até mesmo indispensável, mas a filosofia não pode ser reduzida a isso. O conhecimento da história da filosofia é uma condição necessária, mas não uma condição suficiente para que alguém se torne filósofo.

FOLHA - Esse modelo da USP era explícito, não é?

MACHADO - Sim. É muito fácil você encontrar um filósofo que diga: "Não sou filósofo; sou historiador da filosofia". Defende-se o rigor, mas ousa-se pouco. O que mais se precisa na filosofia brasileira é de coragem. Esse livro que escrevi é mais temático do que monográfico.

Tentei com isso dar uma contribuição, dentro de minhas possibilidades, para a superação dessa fase que, para alguns, já está em andamento no Brasil. Ele não é um livro de especialista. Desses autores todos que estudei, aquele com quem eu tenho mais convivência é Nietzsche. Os outros não. Certamente foi incômodo saber que falava sobre um filósofo que um colega meu estuda há 40 anos. Mas foi uma opção que fiz. Minha ambição intelectual hoje é ser mais extenso do que profundo. Porque senão você aprofunda muito um detalhe e perde a dimensão do geral, tornando-se incapaz de fazer inter-relações conceituais.

FOLHA - Os grandes filósofos da história foram tão extensos quanto profundos?

MACHADO - Exatamente. Não existe nenhum grande filósofo que possa ser reduzido à condição de especialista. Tome Platão, Aristóteles, Kant. Todo grande filósofo se aventurou em muito mais áreas do que compete a um especialista.

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