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24/10/2001 - 05h24

Para francês, a democracia deve ser conquistada, não imposta

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ANTOINE SPIRE
do "Le Monde"

Em 1974 a editora Seul publicava "L'amour du Censeur, Essai sur l'Ordre Dogmatique" (O Amor do Censor, Ensaio sobre a Ordem Dogmática), em que o autor, o então pouco conhecido Pierre Legendre, adotava a pertinência psicanalítica para discorrer sobre a história do direito canônico e das instituições seculares moldadas pelo direito romano.

O poder, argumentava, não sobreviveria apenas como fonte de opressão. Ele é também objeto do desejo. Sobre essa ambiguidade se dá o encontro entre burocratas e governados, lideranças carismáticas e massas domesticadas.

Os estudos seguintes de Legendre adotariam a mesma linha, aproximando áreas geralmente vistas como afastadas, como o dogmatismo e a racionalidade do espaço fabril.

Em entrevista após os acontecimentos do dia 11 de setembro nos EUA, o pensador francês afirma que "assistimos a uma escalada do obscurantismo".

Para Legendre, no momento em que o Estado tende a deixar de ser o fiador
da razão e em que o direito se tornou uma mera máquina registradora de práticas sociais, a soberania das fantasias evoca o niilismo.
Leia os principais trechos de sua entrevista.

Pergunta - O sr. consagrou grande parte de sua energia explicando "a construção antropológica ocidental", interrogando-se sobre o sentido das regras do direito e sua legitimidade. Demonstrou que até agora o Estado era o fiador da razão. O que muda com os acontecimentos de 11 de setembro?
Pierre Legendre -
Não se pode impor pela força o que deve ser conquistado. A democracia foi para o Ocidente uma conquista, até o momento em que ela se transformou e se tornou a caserna libertária.
Acredito que há conivência de fato entre a ideologia libertária e o ultraliberalismo. Após a queda do muro de Berlim, a "Harvard Business Review" publicou um artigo intitulado "A Democracia É Inevitável". De agora em diante nos imporão a democracia como se fosse negócio financeiro, inclusive quando se trata de ameaça.

Presenciei na África os Estados postiços que fabricamos. Sem tradição administrativa, eles só poderiam ser corrompidos. Vi assim, por exemplo, a venda de diplomas. O senso comum da ONU e da Unesco afirma peremptoriamente que o progresso técnico, ao se instalar, folclorizaria a religião ou ela mesmo desapareceria. Pensei que era preciso, ao contrário, trabalhar de modo a fazer coexistirem a educação tradicional, como até a escola corânica, com o ensino moderno. E esperar pelos frutos dessa mistura.

Disse certa vez a um de meus superiores: "Acredito que o islamismo voltará, mas com uma faca na mão." É o que está acontecendo. As instituições democráticas não se impõem, elas devem ser conquistadas pelos Estados e pelos indivíduos.

Pergunta - E até que ponto as gerações mais jovens têm os meios para conquistar as instituições democráticas?
Legendre -
O desmoronamento normativo ocidental tem por efeito o desmoronamento de nossos jovens: droga, suicídio. Numa palavra, o niilismo. Nossa sociedade pretende reduzir a demanda humana aos parâmetros do desenvolvimento, e sobretudo do consumo. No ano passado o presidente da corporação Vivendi disse: "O período político clássico já ficou para trás; é preciso que o consumidor e os empresários assumam a liderança".

Eis a completa abolição do Estado programado.

Pergunta - O sr. então incrimina o jovem ocidental que não sabe mais qual sentido dar à sua vida e o islamismo, que se entrega a sua fantasia de morte?
Legendre -
A soberania da fantasia é um chamativo ao niilismo. Em "Os Possuídos", de Dostoiévski, Kiriliov suicida-se para provar que personifica o princípio da razão. Ao se matar, ele acredita suprimir no homem o sofrimento e o medo e provar que a humanidade pode se superar a si mesma, tornar-se Deus.

Assistimos uma escalada do obscurantismo. Veja o que alguns tecnocratas e universitários nos Estados Unidos designam como transumanismo, a pós-humanidade que comporta a resolução integral do problema da morte [sic". Freud percebeu com perfeição o lapso delirante da razão que as religiões assumem ao metabolizar o assassinato.

O assassinato mora no espírito do homem. Na empresa, a concorrência é um assassinato transposto; em política, as eleições também o são: mandam-se os adversários de volta a seus nichos.

A vida não será mais suportável por raciocínios científicos ou bons sentimentos, mas sim por interpretações coerentes que podem exigir de cada um de nós uma parte de sacrifício, para que não possamos, por exemplo, dar lições a alguém em nome de nossas próprias cegueiras.

Pergunta - Como o especialista em direito romano e direito canônico que o sr. é conseguiu articular o seu saber com a psicanálise, para abrir o campo a essa "antropologia dogmática" que estrutura suas pesquisas?
Legendre -
Eu me formei em muitas coisas. Uma delas, o direito romano e a história do direito, fez de mim um professor em história do direito, em 1957.

Os direitos romano e canônico são o coração desconhecido das ciências jurídicas, que contêm os elementos recalcados da construção do Ocidente. A grande disputa do Ocidente romano-canônico cristão com a tradição judaica está nas raízes de uma concepção religiosa e política do Estado que reteve a minha atenção.

Atente para o fato de a etimologia da palavra Estado implicar em geral um complemento nominal (Estado de alguma coisa).

O Estado é a construção normativa, institucional, que mantém de pé qualquer coisa de essencial à vida social. Ao mesmo tempo, passei a estudar economia. Acrescentei formação literária que incluía filosofia, sociologia, moral.

Quando estudante, no final dos anos 50, percebi a existência da psicanálise. Passei em seguida a frequentar o divã. A psicanálise era então oculta. Por fim, a frequência das artes, sobretudo da poesia, tornaram-se muito caras para mim.

Pergunta - No que o direito romano nos interpela hoje? Ele se refere apenas ao nosso corpo jurídico?
Legendre -
Não. Ele explica também uma grande parte da realidade social. Ossatura do cristianismo, ele é portador de ritos, de liturgias, de uma certa tolerância para com outras culturas.


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