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03/11/2001 - 23h24

Voluntários lutam para se unir ao Taleban

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IGOR GIELOW
da Folha de S.Paulo, no Paquistão

"Eles conseguiram!", gritou Mohammad Iqbal, entrando na sala esbaforido pela altitude de 2.000 metros e pelo ar frio da montanha em Changlagali, uma vila encravada na estrada entre Islamabad e Caxemira, a cem sinuosos quilômetros da capital do Paquistão.

Ele tinha acabado de ouvir no rádio a notícia de que o Taleban deveria liberar a entrada de 1.200 voluntários paquistaneses que esperavam, na Província de Kunahr, para se juntar às forças da milícia no Afeganistão que estão sob ataque dos Estados Unidos há cinco semanas.

"Tudo o que eu quero é ir para lá logo. Já vi a morte de perto na Caxemira e não tenho medo de nada. Quem morre é recebido com honras no céu", afirmou Iqbal, falando com experiência de cinco anos de combate -dos seus 23 de vida. Um veterano.

Ele não é o único. Na fronteira Paquistão-Afeganistão, cerca de 10 mil voluntários esperam sua vez. O Taleban disse que não os quer, até porque não tem como sustentá-los. Mas enviou sinal de que isso pode mudar e que os 1.200 podem ser só o começo.

"Nós só esperamos o sinal", afirma o homem que recrutou Iqbal e o enviou para treinamento. É Fazal-ur-Rehman Shaker, um religioso de 30 anos. De fala calma, ele explica como o jihad (esforço que o muçulmano deve desempenhar pelo islã, que os extremistas interpretam como guerra santa) da Caxemira pode virar um jihad no Afeganistão e, por extensão, no Paquistão do presidente-general Pervez Musharraf.

"Nós estamos do lado dos muçulmanos. Se estão ameaçados pelos EUA no Afeganistão, vamos ajudá-los. Se nosso governo não quer que nós o ajudemos, nosso governo está contra nós e contra o islã", diz, dando eco à carta atribuída a Osama bin Laden divulgada nesta semana, na qual Musharraf é condenado por apoiar "a cruzada cristã". E a carta nem havia sido tornada pública.

Shaker afirma que nesta semana mandará para a fronteira 313 combatentes prontos e armados. "Tenho mais mil a caminho, nos centros de treinamento", conta, na escola religiosa Abdullah Ibn Umar, em Changlaglai. Lá fica uma base do seu grupo de mujahidin, o Jaish-i-Muhammad.

Na quarta-feira, na porta da Embaixada do Taleban em Islamabad, quatro desses combatentes esperavam a entrevista coletiva do mulá Abdul Zaeef acabar. "Estou aqui para ver se consigo meus papéis já hoje", diz o líder do grupo, Abdul Ikrar, 25, um jovem da Jacobabad que segue a receita: sem mulher ou filhos, educado em madrassa e pobre.

A ironia é que foi o próprio governo paquistanês que alimentou os grupos que agora o desafiam. Sua disputa com a Índia pelo território da Caxemira, que se desenrola há 52 anos e passou por três guerras, levou o país a fomentar a União do Jihad da Caxemira.

É um organização difusa, com dezenas de pequenos núcleos que treinam mujahidin, os guerreiros santos. Os números são extremamente imprecisos. Num país com 141,6 milhões de habitantes, estima-se que sejam milhões.

Retórica uniforme
Para um ocidental, é difícil escapar de simplificações ao se confrontar com o discurso de um mujahhid. A Folha visitou dois centros de recrutamento, um de treinamento militar, três escolas religiosas e acompanhou duas manifestações. A retórica dos soldados é impressionantemente uniforme: calcados em passagens do Alcorão, eles desfiam ataques ao Ocidente, lembram da derrota soviética no Afeganistão e falam da falta de medo de morrer porque o Paraíso os espera.

"Você tem de entender que este é um país que foi criado para ser uma república de muçulmanos. A nossa fé é muito, muito mais arraigada do que o discurso fácil de um Bin Laden. Por outro lado, tem gente manipulando isso", afirma o analista político Jehanzeb Aziz, que trabalhou como porta-voz dos serviços de segurança e inteligência do país.

No campo político, fala-se em 200 mil filiados a partidos islâmicos. "Somos hoje a voz do povo contra a opressão dos americanos e de nosso governo, que nos traiu", dispara o vice-presidente da maior dessas agremiações, o Jamiat-i-Islami, Liaquat Baloch.

Baloch é um dos acusados por Aziz de manipular jovens como Mohammad Iqbal. Porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Aziz Khan dá a visão oficial, mais rósea: "Os mais extremistas só estão fazendo barulho".

Aziz faz ressalvas. "O nosso povo, a classe média principalmente, não quer o apoio ao ataque dos EUA. Como estamos em crise econômica, tentando rolar nossos US$ 32 bilhões de dívidas, e os índices sociais são ruins, temos chão fértil para as manifestações."

Esse chão pode ser avaliado com planilhas da Autoridade Nacional de Dados e Registros: um PIB per capita de US$ 2.000, analfabetismo na casa dos 62%, 34% da população na pobreza.

A colheita da lavoura fica por conta das madrassas, nome que designa as 15 mil escolas religiosas do país. São instituições populares, que dão ensino básico gratuito e doutrinação islâmica integrista. O Taleban nada mais era do que uma milícia de estudantes encorpada pelo governo do Paquistão, para impor a ordem, e um regime amigo, no Afeganistão.

"Nossos alunos são geralmente muito humildes, e nós ensinamos o caminho da fé para eles", afirma o diretor da madrassa Arabia, em Murre (60 km de Islamabad), o mulá Saeed Abbasi, 50, que tem 140 alunos. "Cada um fica aqui uns três, quatro anos. O sustento vem de empregos no comércio da cidade e doações", relata.

Ele indica em Murree o centro de treinamento do grupo Sheikhupura, onde Ahmed Shazhad, 19, recebe visitantes. "O jihad promove a paz na Terra e nega o terrorismo", diz a contracapa do livreto explicativo que ele distribui.

Depois de contar sua história, típica de um país onde 41% da população tem até 14 anos e as condições de vida são difíceis (leia texto abaixo), Shazhad pede para que não sejam tiradas fotos -nem dele nem do campo de treinamento desativado onde ele aprendeu a atirar com 15 anos.

O treinamento custa o equivalente a US$ 1.200 e é bancado por doações. Dura quase seis meses: 21 dias de treinamento militar, 21 de doutrinação religiosa e o resto de capacitação para ações. Ninguém diz uma palavra sobre quem paga a conta.

Mas os jovens na sala falam sobre morrer pela religião, pela causa de seus irmãos do outro lado das montanhas. É propaganda, como em toda guerra, mas não deixa de causar certo estranhamento a naturalidade com a qual eles reafirmam, a toda hora, seu "morituri te salutant" voluntário.


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