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18/11/2001 - 11h27

Cabul era quase moderna, diz antropólogo suíço

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JOÃO BATISTA NATALI
da Folha de S.Paulo

Não é verdade que, com a retirada do Taleban, Cabul se transforme numa cidade arejada em seus costumes e adote um modo de vida ocidentalizado.
O antropólogo suíço Pierre Centlivres, 68, professor emérito da Universidade de Neuchâtel e ex-conselheiro científico do Museu de Cabul, afirma que no passado ocorreram lampejos de modernização, com o consumo de bebidas alcóolicas nos anos 80 ou minissaias entre as universitárias na década anterior.

Mas a cultura tradicional é forte naquele país. O noivo ainda precisa "comprar" a noiva, pagando à família dela um valor equivalente ao de algumas vacas. Centlivres viveu em Cabul durante dois anos, nos anos 60, voltando ao país diversas vezes. Eis os principais trechos de sua entrevista.

Folha - As regiões urbanas do Afeganistão estavam culturalmente modernizadas quando em 1996 o Taleban tomou o poder?
Pierre Centlivres - Não se pode falar de regiões urbanas de um modo geral. Havia, isto sim, a cidade de Cabul, onde a partir dos anos 60 a classe média frequentava restaurantes, e mulheres circulavam com a cabeça descoberta.


Folha - A existência de uma universidade com mentalidade metropolitana pesava nesse processo?
Centlivres - Sem dúvida alguma. As faculdades funcionavam com a patronagem de países ocidentais. O curso de medicina era em parte mantido pela França, o de economia, pela Alemanha, a escola de engenharia, pelos Estados Unidos, e o instituto politécnico, pelos russos. Uma parte dos professores dessas instituições vinham do Ocidente ou da URSS.

Folha - Os jovens frequentavam piscinas?
Centlivres - Havia em Cabul apenas duas ou três piscinas, em hotéis ou em clubes frequentados por estrangeiros, como o clube alemão. Mas elas eram frequentadas apenas por homens.


Folha - E nas ruas, como as pessoas andavam vestidas?
Centlivres - Nos anos 70, a maior parte das pessoas se vestia com roupas ocidentais em Cabul.


Folha - Havia algo como o que ocorreu no Japão há um século, quando só os camponeses se vestiam com roupas tradicionais?
Centlivres - Entre 1919 e 1929 um rei afegão partidário de reformas, Amanullah Khan, procurou impor à força a adoção de roupas ocidentais. Mas ele fracassou e foi obrigado a abdicar por pressão dos mais conservadores. Bem mais tarde, nos anos 60 ou 70, até pessoas da classe média baixa usavam roupas ocidentais. Uma curiosidade: eram roupas usadas, doadas na Europa a entidades filantrópicas e que misteriosamente eram revendidas em bazares. Os afegãos muito ricos frequentavam alfaiates e costureiros para a confecção de suas roupas. Em Cabul quase não mais se viam roupas tradicionais, ainda bastante usadas nas áreas rurais do país.


Folha - As mulheres andavam com a cabeça descoberta?
Centlivres - As mais ricas, às vezes com um vestido de manga comprida e a barra bem abaixo do joelho, cobriam geralmente a cabeça com um véu.


Folha - Podia-se falar, há 20 anos, de uma classe média afegã, já que ela era estatisticamente minúscula, em meio à massa de pobres?
Centlivres - É difícil falar de classe média em termos nacionais. Mas havia sobretudo em Cabul uma parcela da população com essa característica. Eram os funcionários públicos graduados, os grandes comerciantes, os médicos e as pessoas com maior escolaridade. Eram pessoas ao mesmo tempo nacionalistas e partidárias da modernização.


Folha - Elas consumiam bebida alcóolica, como ocorria com a classe média iraniana de antes da revolução dos aiatolás, em 1979?
Centlivres - Nos anos 70, e por um curto período, restaurantes em Cabul reservados aos estrangeiros vendiam vinho e cerveja. Em princípio os afegãos não podiam frequentar esses lugares. Podia-se também, correndo todos os riscos imagináveis, comprar bebidas de origem duvidosa no mercado público. Sob o regime pró-soviético, entre 1979 e 1992, o consumo do álcool se expandiu. Encontrava-se com facilidade cerveja e vodca.


Folha - Durante o governo pró-soviético de Brabak Karmal até que ponto chegou a "modernização forçada"?
Centlivres -O que os comunistas fizeram foi introduzir a alfabetização dos adultos dos dois sexos. Isso chocou os meios religiosos, que acreditavam que as moças já crescidas seriam induzidas à emancipação e à sem-vergonhice. Desconheço qualquer educação sexual.


Folha - Mas uma camponesa alfabetizada passava a ter acesso às revistas femininas feitas no Líbano ou no Egito, onde os costumes são bem mais liberados?
Centlivres - Não se chegou a tal ponto. A mulher afegã não exporia seu corpo como as libanesas. Ela nunca mostrou o braço ou os ombros. No início dos anos 70, na Universidade de Cabul, algumas estudantes chegaram a usar minissaia. Mas elas corriam riscos. Algumas delas receberam nas pernas tiros de fuzil. Era uma reação dos meios conservadores a uma modernização que eles acreditavam se confundir com a degradação dos costumes.


Folha - Qual o papel dos comunistas na emancipação feminina?
Centlivres - Foi muito importante. A mulher ganhou direitos que não tinha no mercado de trabalho. E foi estimulada a pertencer a associações que modernizavam os costumes, como as associações de mães. Os comunistas inovaram em outras coisas. Nas grandes cidades construíram, por exemplo, palácios de casamentos, para festas muito pudicas que comemoravam os matrimônios, mas tirava dele a dimensão de festa religiosa ou de "comercialização" da noiva entre as famílias.


Folha - Até que ponto todas essas inovações não associariam hoje, injustamente, os comunistas ao progresso dos costumes?
Centlivres - Os afegãos não pensam assim. A frequência a restaurantes e mulheres andando de cabeça descoberta nas calçadas são coisas que se tornaram aceitas nos últimos anos da monarquia (o rei foi deposto em 1973). Mesmo o Taleban acredita que a ocidentalização corrompeu Cabul bem mais que os comunistas. Quis então punir e purificar uma cidade que acreditava ser libertina.


Folha - Nós temos falado sobretudo de Cabul. O que acontecia em Candahar, Herat e Mazar-e-Sharif?
Centlivres - Cabul foi uma cidade bem mais modernizada. Candahar, ao contrário, estava mais ligada à tradição islâmica conservadora. Foi de Candahar que vieram os maiores protestos contra a emancipação feminina.


Folha - Essa emancipação foi desencadeada por algum episódio?
Centlivres - Com certeza isso ocorreu em 1959, quando o primeiro-ministro Mohamad Daud determinou que as mulheres de seus ministros comparecessem à festa nacional com as cabeças descobertas. Foi um grande acontecimento que gerou também grandes protestos.


Folha - Por que Candahar é tão mais conservadora?
Centlivres - O conservadorismo não é um fato apenas religioso no Afeganistão. É também um fato tribal. Os pashtus (predominantes no sul) têm uma noção de honra e de hegemonia da masculinidade que o Taleban herdou.


Folha - A classe média escolarizada não se sentiu infeliz com a repressão do Taleban?
Centlivres - Essa classe média em grande parte deixou o país. Há centenas de milhares de exilados nos Estados Unidos, no Canadá, na Europa, na Austrália ou no Japão. Quem falava inglês ou havia frequentado uma universidade dificilmente permaneceu no país. Há hoje poucos médicos, técnicos ou pesquisadores. O país perdeu sua mão-de-obra qualificada.


Folha - O Taleban não se esforçou para trazer essa gente de volta?
Centlivres - O Taleban tinha apenas duas prioridades: a guerra contra os opositores do norte e a reimplantação da moral islâmica como eles a concebem.


Folha - Antes de 1996 havia prostitutas em Cabul?
Centlivres - Sim, prostitutas e também rapazes de programa. Eles continuaram a trabalhar, apesar da repressão. Mas não é a única ligação entre sexualidade e dinheiro. Rapazes pobres casam-se tarde porque não têm o dote para a família da noiva.


Folha - Os movimentos de reforma não conseguiram acabar com esse sistema de comercialização?
Centlivres - Os reformistas tentaram baixar aquilo que se chama de "o preço da noiva". Uma noiva vale o preço de algumas vacas.

 

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