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29/10/2002 - 02h56

Conheça o caminho para se familiarizar com o cinema brasileiro

INÁCIO ARAÚJO
crítico da Folha de S.Paulo

A principal tentativa de criar uma verdadeira indústria de cinema no Brasil aconteceu no fim dos anos 40, quando Franco Zampari criou a Companhia Vera Cruz . Ele construiu estúdios modernos em São Bernardo do Campo, criou um "star system" brasileiro com atores como Anselmo Duarte, Tônia Carrero e Amacio Mazzaropi. Trouxe para o país Alberto Cavalcanti, brasileiro famoso por seus filmes na Inglarerra e na França. Cavalcanti, por sua vez, trouxe técnicos de diversos países europeus para ensinar os brasileiros a filmar. A Vera Cruz produziu 18 filmes antes de entrar em colapso, no fim de 1953. Seus maiores sucessos foram, ironicamente, "O Cangaceiro", de Lima Barreto, e os filmes de Mazzaropi —os únicos dirigidos por brasileiros.

O fracasso da Vera Cruz levou um grupo de jovens intelectuais a pensar que, num país atrasado como o Brasil, a indústria de cinema não fazia sentido. Mais valia fazer como a Itália, que, destruída pela guerra, começou a fazer seus filmes fora dos estúdios, nas ruas, com atores amadores, em contato direto com a realidade. A maior crítica à Vera Cruz era justamente que seus filmes passavam ao largo da vida real dos brasileiros. Foi assim que Glauber Rocha, Paulo Cesar Saraceni, Mario Carneiro, Gustavo Dahl e outros criaram o principal movimento cinematográfico do país até hoje: o cinema novo. Seu exemplo imediato era Nelson Pereira dos Santos, que havia introduzido o neo-realismo no Brasil, com "Rio, 40 Graus", em 1955. O "pai" era Humberto Mauro, cujos filmes, desde os anos 20, tratavam de mostrar a vida brasileira.

No começo dos anos 60, o cinema novo mudou os principais parâmetros de fazer cinema no Brasil. Saiu às ruas, usou a câmera na mão no lugar do tripé, trabalhou com pouca luz, introduziu novos atores. Sua idéia era nacionalista e, não raro, tinha como perspectiva a transformação social do país. Mas só foi aceito aqui depois de fazer sucesso na Europa. Seu grande marco é 1964, quando as exibições de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, e "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, foram um acontecimento no Festival de Cannes.

Reprodução
Cena de "O Pagador de Promessas"
Nem todo cinema brasileiro dos anos 60 é "novo". "O Pagador de Promessas" , de Anselmo Duarte, que ganhou a Palma de Ouro de 1962, em Cannes, deve muito à Vera Cruz: é um filme de construção clássica e seu fotógrafo é o inglês Chick Fowle (que veio ao Brasil para trabalhar na companhia). Anselmo sabia como fazer para trazer o grande prêmio: usou história, paisagens e tipos "autenticamente" brasileiros. E, de quebra, fez um bom filme.

Se o cinema novo era nacionalista, o chamado "cinema marginal", do fim dos anos 60, buscava inspiração na antropofagia de Oswald de Andrade. Seus referenciais eram outros: Jean-Luc Godard e a "nouvelle vague" francesa, Orson Welles e o moderno cinema americano e as chanchadas da Atlântida. Tratava-se de deglutir a influência estrangeira e responder criativamente. Daí surgiram "O Bandido da Luz Vermelha", de Rogério Sganzerla, "Matou a Família e Foi ao Cinema", de Julio Bressane, "Bang Bang", de Andrea Tonacci, "Lilian M", de Carlos Reichenbach. São filmes feitos quando o regime militar já estava consolidado e não se pensava mais em grandes mudanças políticas. Frase-chave: "Quem não pode fazer nada, avacalha", diz o protagonista de "O Bandido da Luz Vermelha".

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Cena de "Dona Flor e Seus Dois Maridos"
Do ponto de vista comercial, a década de 70 foi a melhor do filme brasileiro. Criou-se uma legislação forçando os cinemas a exibir nossos produtos. Surgiu uma empresa, a Embrafilme , e por meio dela o Estado financiava o cinema dito "de prestígio". Ao mesmo tempo, os exibidores financiavam as comédias eróticas (ditas "pornochanchadas"). A Embrafilme tinha sucesso junto à classe média com filmes como "Pixote", de Hector Babenco, ou "Bye Bye Brasil", de Cacá Diegues. As comédias eróticas levavam ao cinema sobretudo o público popular. Às vezes, acontecia de um mesmo filme abrigar o "popular" e o "prestígio", caso de "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, com seus mais de 12 milhões de espectadores.

Nos anos 80, a produção erótica nacional degringolou em pornografia. O público começou a deixar as salas às moscas . Os exibidores passaram a lutar na Justiça, com sucesso, contra a obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros. Ainda assim, houve filmes muito bem-sucedidos, como "Inocência", de Walter Lima Jr., ou "Anjos do Arrabalde", de Carlos Reichenbach.

Em 1990, o governo Collor deu o peteleco final: fechou a Embrafilme no primeiro dia de governo. Parecia o fim. Mas nem tanto: no Brasil, o cinema sempre se fez de ciclos seguidos por momentos de paralisação. O fim do século 20 foi marcado pelas leis de incentivo fiscal . Isto é, em vez de escolher diretamente os filmes a serem financiados, o Estado delegava esse papel a empresas, que podiam deduzir o investimento do imposto de renda. Desta vez não havia leis de obrigatoriedade efetivas. O público popular —sempre mais fiel ao filme brasileiro— já não ia mais ao cinema. Então, os filmes trataram de se equipar: a fotografia sofisticou-se, adotou-se o som direto como norma, as equipes cresceram. Tudo isso foi bom ou mau? Trocou-se a "estética da fome" de Glauber Rocha por uma "cosmética da fome", como quer a ensaísta Ivana Bentes?

Nos últimos anos, buscou-se a "qualidade" como forma de reencontrar o espectador . Será que essa palavra significa muita coisa, quando se trata de cinema? É um aspecto a discutir, vendo filmes de jovens realizadores, como "Terra Estrangeira", de Walter Salles Jr., "Um Céu de Estrelas", de Tata Amaral, "Baile Perfumado", de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, entre outros. Muitos filmes reconhecidos como obras de arte não fizeram sucesso. Outros fizeram sucesso, alimentaram a indústria, trataram de temas relevantes, mas acabaram esquecidos. Alguns servem sobretudo para divertir, outros, para conversar a respeito. O cinema é uma arte com muitos sentidos. Um deles, talvez não o menos relevante, é mostrar coisas que estão próximas de nós e que, por descuido ou distração, com frequência esquecemos de ver.

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