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Cientistas alteram a memória de roedores

Experimento usou a manipulação genética de células cerebrais para mudar a percepção negativa de lembranças

Especialistas acreditam que os resultados possam um dia ser aplicados para casos de estresse pós-traumático

SALVADOR NOGUEIRA COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Quanto você pode confiar na sua própria memória? Pesquisadores nos Estados Unidos conseguiram transformar a natureza de lembranças no cérebro, tornando-as boas ou ruins a seu bel-prazer. Por enquanto, a façanha só é possível em camundongos.

Os experimentos ajudam a compreender o processo de formação e recuperação de memórias no cérebro, assim como sua associação a sensações boas ou ruins. E, por ora, esse é o objetivo declarado dos cientistas.

Contudo, é impossível não se lembrar de filmes como o clássico "Laranja Mecânica" (1971), distopia de ficção científica dirigida por Stanley Kubrick.

A película mostra um futuro em que a repressão ao crime se dá por meio de uma tecnologia que faz prisioneiros condenados associarem imagens de violência a sentimentos ruins, tornando-os escravos desse condicionamento e, assim, incapazes de comportamento violento.

Questionado acerca dessas possibilidades mais controversas, Roger Redondo, neurocientista do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e primeiro autor do trabalho, se esquiva.

"Nosso laboratório não tem a intenção de ajudar a criar essas tecnologias", disse o pesquisador à Folha, aproveitando em seguida para cutucar quem pergunta. "Sobre a manipulação de memórias, há pouco que os neurocientistas possam ensinar aos jornalistas e editores de notícias. Isso foi uma provocação, é claro."

O resultado impressionante e evocativo foi obtido por Redondo e seus colegas no laboratório comandado por Susumu Tonegawa, biólogo ganhador do Nobel de medicina em 1987.

Ele vem na esteira de outros trabalhos realizados nos últimos dois anos, em que os pesquisadores demonstraram a possibilidade de inserir memórias falsas ou mesmo adulterar algumas verdadeiras, no cérebro de camundongos.

A novidade é ainda mais intrigante porque demonstra não só a habilidade de manipular memórias como alterar a percepção que temos delas.

No experimento, camundongos tiveram suas células cerebrais do hipocampo (onde se formam as memórias) e da amígdala (centro das emoções e das respostas instintivas) alteradas geneticamente. A modificação, introduzida na forma de um vírus, adicionou um gene que tornava as células neuronais sensíveis à luz.

A partir disso, os cientistas geraram nas cobaias uma lembrança negativa --como um choque-- e observaram que células eram ativadas na memória.

Para reativar a lembrança, eles usavam um feixe de luz azul. Ao ser estimulado, o animal se comportava como se fosse levar um choque e fugia da iluminação.

Então, veio a transformação. Ao expor o camundongo a uma coisa boa --como um conveniente encontro com uma fêmea da espécie-- e ao mesmo tempo acender a luz sobre ele, a lembrança que era ruim se transformou em boa.

Os pesquisadores também mostraram que o inverso era possível --transformar a lembrança de uma experiência positiva em um sentimento negativo.

USOS TERAPÊUTICOS

Embora o resultado tenha sido obtido com camundongos, não há razão para acreditar que os mesmos efeitos não pudessem ser obtidos em humanos.

"Há muitas evidências de que tanto os circuitos como a plasticidade vistos nos modelos animais de aprendizado e memória sejam conservados em humanos", afirma Redondo.

A utilidade terapêutica da técnica, caso pudesse ser transposta para humanos, é óbvia para casos diagnosticados de transtorno do estresse pós-traumático, que afeta pessoas que sofreram traumas violentos, desde vítimas de estupros até combatentes em conflitos militares.

A ideia é, sem o uso de drogas, remodelar certas lembranças ao "esculpir, rescrever, mudar", segundo o pesquisador, um circuito de memória e reverter a conectividade neuronal patológica.

"Esperamos que nosso estudo inspire e abra um novo caminho para tratar condições como transtorno do estresse pós-traumático e outras doenças neurológicas", diz Redondo. "Para atingir esse objetivo, nosso laboratório está testando essa tecnologia em modelos [animais] de transtorno do estresse pós-traumático e depressão."

Como se vê, a era do cérebro como uma caixa-preta impenetrável parece mesmo estar chegando ao fim.


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