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Luís Francisco Carvalho Filho
O carrasco e o torturador
No jogo de semelhanças e diferenças entre o carrasco e o torturador. Um cumpre a lei, o outro a violenta
Na galeria dos personagens interessantes da história do Brasil está Fortunato José, carrasco que assombrou Minas Gerais no século 19.
Existia a pena de morte por enforcamento, sobretudo para escravos que matavam senhores, e Fortunato serviu de algoz em 87 execuções ao longo de quatro décadas em 31 cidades. Marca impressionante e que explica a fama que alcançou em vida.
De Fortunato, resta uma fotografia no leito de morte, na cadeia de Ouro Preto, preciosidade que hoje integra o acervo do Arquivo Público Mineiro.
Pedro Nava, em "Baú de Ossos" (editora Sabiá, 1972), conta ter visto, criança, a foto do carrasco e descreve uma "fisionomia serena, de traços finos". Compara sua figura à imagem de São Pedro dormindo que Aleijadinho criou para os Passos de Congonhas.
Além de remunerado, era tratado como celebridade. Alto e musculoso, o ex-escravo ia com orgulho nos cortejos de execução e habitava o imaginário local. Quando chegou a Sabará para enforcar as escravas Rosa e Peregrina, em 1858, conta Nava, Fortunato "tomou um fartão de tanto porco, tanto arroz de pequi, tanto bolinho de feijão, tanto doce e tanta jabuticaba "" que lhe chegavam em bandejas".
Em 1877, já no ostracismo (a pena de morte caía em desuso), teve o "esboço biográfico" publicado pelo periódico Mosaico Ouro-Pretano. Ele próprio fora condenado à morte pelo homicídio de sua senhora, mas teve a pena comutada em prisão perpétua (galés) com a condição de ser "executor da justiça".
O historiador João Luiz Ribeiro levanta a hipótese de Fortunato ter sido enganado. Há sinais de que sua condenação à morte foi anulada e, assim, o arranjo que o transformou em carrasco teria se baseado numa fraude oficial.
O cargo nunca existiu, mas Fortunato se considerava "empregado público". Disse ter se acostumado a enforcar pessoas e que só sentia "repugnância" na hora de matar mulheres. Naquela altura, sonhava "viver sossegado em algum canto".
Sossego que, aparentemente, o coronel Brilhante Ustra, peça chave para a compreensão da tortura em São Paulo durante o regime militar, não obteve. Apesar da anistia política que o beneficia, segundo o STF.
A história reserva novidades para Ustra. Decisão judicial de 2012 declara ainda haver relação jurídica entre torturador e torturado, o que permite esclarecer tudo que se escondeu.
Curioso o jogo de diferenças e semelhanças entre o carrasco e o torturador.
Um cumpre a lei, o outro violenta a lei. Um age à vista de todos, o outro atua no subterrâneo. Um executa ordem judicial depois de veredito justo ou injusto, o outro executa serviço que o Judiciário não pode tolerar.
Além do sadismo que contamina a ação de torturadores e carrascos, ou seria impossível o desempenho de papeis tão sinistros, ambos estimulam o medo. Agem em nome do Estado, mas costumam concentrar em suas pessoas a repulsa que deveria ser dirigida ao que permite suas existências.
Fortunato fez o que fez porque o Império e seus magistrados aplicavam a pena de morte. Não tem culpa de nada.
Ustra foi autorizado a fazer o que era proibido e contava com o amparo da cumplicidade silenciosa de muitos. Tem culpa de tudo, ainda que não possa ser punido. Mas não carrega a culpa sozinho.