Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria
Luís Francisco Carvalho Filho
Crianças e porcarias
Não será com uma visão primitiva da publicidade que as crianças crescerão felizes e saudáveis
Estudo recente da Universidade de Cornell (Food and Brand Lab) revela o uso mercadológico do contato visual entre consumidores e personagens das caixas de cereais. São 65 produtos e dez pontos de venda. O resultado é desconcertante: cereais para adultos têm personagens que olham nos olhos do consumidor adulto, frente a frente; nos cereais para crianças, eles olham para baixo.
Na disputa pelo inconsciente infantil, a indústria norte-americana cuida da altura das prateleiras (58,32 cm em média) e do ângulo (9,6 graus) de observação. O corredor do supermercado se transforma em "big brother" composto pelo olhar arregalado de coelhinhos, tigres, sapos e mascotes como o capitão Crunch.
Nada a fazer diante de tanta malícia --salvo não levar o filho às compras ou estimular outro cardápio para o café da manhã.
De olho na propaganda infantil, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, gostaria de proibir tudo.
A Resolução 163, publicada em abril, considera abusivo o direcionamento de publicidade e comunicação à criança com o objetivo de persuadi-la ao consumo de qualquer produto. O ato não tem força legal, mas lembra o esforço do regime militar para impedir propaganda capaz de criar no eleitor "estados mentais".
O que tornaria abusiva a propaganda, segundo o Conanda, é a utilização de "linguagem infantil", "excesso de cores", "vozes de criança", "desenho animado". Por reunir tantos elementos perniciosos, o anúncio da Faber-Castell a partir da canção "Aquarela", de Vinicius de Morais e Toquinho, seria crime de lesa-humanidade.
Não é fácil disciplinar juridicamente o tema, assim como é difícil imaginar, em país livre, a vida infantil sem o consumo de porcarias. Temos o direito de suprimir toda propaganda dirigida à criança? A questão é saber se o Estado deve observar passivamente o movimento publicitário e se há espaço para intervenções pontuais e legítimas.
Os que são contra vetos, além de implicações relativas à liberdade de expressão, de criação e de iniciativa, lembram que a educação se faz em casa e que, em tese, os pais têm poder suficiente para resistir ao que é inadequado. A obesidade infantil, por exemplo, seria fruto de hábitos familiares, não do livre arbítrio da própria criança. Pode ser.
O governo Dilma bateu um recorde em 2013 e gastou R$ 2,3 bilhões com propaganda. Acrescente-se o que governadores e prefeitos gastaram e o número fica astronômico. Como os órgãos de controle fingem que é publicidade institucional, de utilidade pública, e não propaganda política disfarçada, há um desperdício assombroso de recursos.
Por que os governos não gastam com educação nutricional o que gastam com autopromoção? Ensinar a ler o rótulo das embalagens. Sugerir propostas balanceadas de alimentação. Lançar alertas contra o consumo excessivo de alimentos processados. A água mineral da Coca Cola no Brasil (Crystal) é rica demais em sódio e os hipertensos deveriam saber disso. Ou não?
Agências de propaganda se sofisticam e o poder público é rudimentar. Não será com uma visão primitiva da publicidade que as crianças crescerão felizes e saudáveis.