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Cotidiano

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Luís Francisco Carvalho Filho

Misericórdia

As Santas Casas não eram apenas hospitais; Cuidavam de órfãos, viúvas e ensinavam aos simples

A imagem das Santas Casas é associada a hospitais e, geralmente, as notícias são de crise de gestão, de desvio de verbas ou da crônica dificuldade financeira que as atinge. É a mais antiga e entranhada organização não governamental do Brasil.

A Santa Casa de Misericórdia foi criada em Lisboa, em 1498, e logo filiais se espalhariam não só pelo território português, mas por todo o domínio além-mar, em lugares tão remotos como Nagazaki (Japão) e Goa (Índia). No Brasil, ainda no século 16, a instituição estaria presente em Olinda, Santos, Vitória, Salvador, São Paulo, Ilhéus, Rio de Janeiro e Paraíba. Anchieta informava, em 1584, que "em todas as capitanias há Casas de Misericórdia, que servem de hospitais, edificadas e sustentadas pelos moradores da terra com muita devoção".

Não eram apenas hospitais. Cuidavam de órfãos, viúvas e mulheres desamparadas, distribuíam esmolas para loucos e famintos, consolavam os tristes, ensinavam aos simples.

No cumprimento de seus compromissos de amparo material e espiritual, veremos a instituição exercendo funções burocráticas, como o enterramento de escravos, fornecimento de roupas e alimentação para presos (a "ração geral" era insuficiente para o sustento das prisões), promovendo também a defesa de pobres perante a justiça colonial --embrião do que hoje se tem como assistência judicial gratuita.

Grandes advogados compareceram ao Tribunal da Relação, na Bahia ou no Rio de Janeiro, em nome da Santa Casa, para defender gente acusada de graves delitos, como Tiradentes e os réus da Conspiração dos Alfaiates.

Até a abolição da pena capital, a Irmandade, instalada nas principais vilas e cidades do Império, acompanharia, sem falta, os condenados à morte ao local da forca, orando pelas suas almas e legitimando a punição extrema: o consolo dos padecentes. E até pelo menos 1825, seus integrantes cumpririam o ritual macabro de recolher, anualmente, no dia de todos os santos, a ossada dos enforcados, exposta para espanto e intimidação de todos, para dar-lhes, enfim, uma sepultura: a procissão dos ossos.

Não se conta a história da filantropia social no Brasil sem o paradigma das Santas Casas, que nunca fizeram parte da hierarquia da Igreja Católica e atuavam à margem do Estado, ainda que prestando serviços de natureza pública, muitas vezes em aberto conflito com autoridades e governantes.

Pertencer à instituição era sinal de prestígio e fidalguia. Sua atuação era mantida pelo voluntarismo e pela doação e herança dos chamados "homens bons".

Em 2004, o Guia dos Arquivos das Santas Casas, editado pela PUC e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, indicava a existência de 440 instituições em atividade, responsáveis por considerável parte dos leitos hospitalares oferecidos para a população carente. Seus arquivos são um manancial inestimável para a compreensão do próprio país.

Tanta tradição e legitimidade local, tantos legados e lendas, seus hospitais não poderiam ser uma referência para o nosso combalido sistema de saúde? Ver a decadência das Santas Casas, aparentemente inexorável, a lenta e contínua agonia de um potencial filantrópico ainda necessário, provoca um sentimento de desperdício e tristeza.


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