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Acordes da ZL

Com instrumentos a tiracolo, garotos enfrentam o sufoco da lotação e do metrô para tocar Lady Gaga e Coldplay em versão instrumental na avenida Paulista

ROBERTO DE OLIVEIRA DE SÃO PAULO

Sete horas da noite. Lotação do metrô no topo. É quase impossível dar uns passinhos dentro do vagão sem levar um cutucão ou um pisão no pé. Imagine, então, mover-se por ali espremido, agarrado a um violoncelo.

Com 1,20 m de comprimento e 40 cm de largura, o estojo do instrumento de Leonardo Carneiro de Salles é só 70 cm menor que ele.

Leonardo, 16, o irmão João Vitor, 12, e a amiga Nathalia Oliveira, 16, encaram uma via-crúcis três vezes por semana. Entre lotação e três baldeações de metrô, a trupe leva quase uma hora e meia para sair de Itaquera (onde vive Nathalia) e Patriarca (casa dos irmãos Salles) até chegar à estação Trianon-Masp.

Numa das avenidas mais barulhentas de São Paulo, a Paulista, por onde circulam cerca de 7.000 veículos nos horários mais carregados, instalam-se em frente a uma agência bancária.

Em meio ao zigue-zague de automóveis e pedestres, começam a tocar uma versão instrumental de "Viva la Vida", dos ingleses do Coldplay. Engatam "Alejandro", da americana Lada Gaga.

O mega-hit "I Gotta Feeling", dos californianos The Black Eyed Peas, é suavizado pelas notas emitidas pelo violoncelo de Leonardo, pelo violino de Nathalia e pela flauta transversal de João.

"A Paulista é uma vitrine de tolerância", filosofa Nathalia, como quem diz que ali se pode tocar de tudo.

Mas a playlist não se restringe ao universo pop. "Quando começamos, há dois meses, uma senhora pediu 'Bolero', de Ravel", lembra Leonardo. "Só que a gente não sabia tocar."

Para não dizer que os meninos não engatam nada, digamos, clássico, "Primavera", de "As Quatro Estações", de Vivaldi, surge para acalmar os apressados.

"Até os skatistas, que passam correndo, param para ouvir a gente", conta a violinista. Perguntas pipocam. "Uma das que ouço mais vezes é: 'de onde vocês são?'", lembra Nathalia.

"As pessoas ficam surpresas quando descobrem que a gente é da zona leste. Será que elas ainda acham que lá só tem funk?"

DE PAIS PARA FILHOS

Da música clássica aos hinos religiosos na igreja Assembleia de Deus, em Itaquera, onde os três garotos também tocam, a escolha da carreira teve influência dos pais.

O pai de Nathalia, Aldemar, 51, canta na igreja, assim como a mãe dos meninos, Sueli, 48, a maior incentivadora de Leonardo e João Vitor. A mãe da garota, Maria Alice, 50, toca violoncelo.

Os jovens frequentam escolas públicas. Nathalia cursa o terceiro ano de música na Escola de Música do Estado. Leonardo há sete anos e meio dedica-se à música.

Hoje, está na escola municipal, junto com João -aos quatro anos, o garoto tocava flauta doce, aos sete, trocou-a pela transversal.

Quem alimentou a ideia de o trio ir para a Paulista foi o pai dos meninos, o comerciante Joilson, 50. "Estávamos com dificuldade financeira, e meu pai sugeriu que a gente tocasse no metrô ou na avenida", diz Leonardo.

A maioria dos ouvintes dá R$ 1, R$ 2. Há casos -raros- de quem deposite notas de R$ 50 no chapéu de palha de Leonardo estendido na calçada.

A grana é dividida entre os três. O resultado não é lá essas coisas, mas ajuda na manutenção dos instrumentos e garante o cineminha e o sorvete de fim de semana.

"A Paulista é um lugar ótimo porque lá tem muita gente com cultura que gosta de música clássica", empolga-se João. Como todo garoto de sua idade, gaba-se de ter comprado com seu próprio dinheiro um tênis Nike e uma "camiseta descolada".

No fim do expediente, em uma das baldeações de volta para casa, o trio desce na estação Sé. Só que no lugar de pegar o metrô sentido Corinthians/Itaquera, na zona leste, faz o caminho inverso.

"Nossa preocupação é com os instrumentos", conta Nathalia. Os três "regridem" cinco estações, rumo ao ponto final na Barra Funda. Descem e pegam o trem novamente, agora no sentido certo.

A estratégia, comum entre tantos paulistanos, é a forma de garantir assento para os seis "integrantes". Quem sabe, desta vez, eles ficam ilesos de pisões e cutucadas!


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