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Diário de uma consumista em jejum

Repórter passa 15 dias sem ir às compras e conta como sobreviveu às crises de abstinência e a duas recaídas, uma delas ao comprar uma raquete de matar pernilongos

TETÉ MARTINHO COLUNISTA DA FOLHA

Primeiro dia. No fim da tarde, estou fazendo hora para ir ao cinema quando uma caveirinha pisca para mim de uma vitrine. Uma, não, várias. Sorridentes e floridas, elas estampam duas nécessaires e um bloco de notas irresistível.

Não sendo exceção entre os admiradores da simpática figura, entro na loja, pergunto o preço, saco o cartão e arremato. Feliz da vida por resolver um problema que nem sabia que tinha: arranjar uma lembrança natalina legal e baratinha, ainda que atrasadíssima, para uma amiga.

Só me daria conta do mau passo depois do filme. No primeiro dos quinze dias em que me dispus a passar sem abrir a carteira (a não ser para comprar comida), a fim de viver uma experiência digna de ser contada aqui, escolho matar o tempo olhando vitrines, invento uma necessidade do além e falho miseravelmente, tudo sem perceber.

Por pior que ande minha memória, não costumo esquecer o que estou fazendo. Desconfortável, prego um post-it mental e retomo a missão.

Os dias seguintes transcorrem sem grandes dramas. Sublimar os impulsos mais malucos de consumo vem sendo um exercício constante (além de questão de sobrevivência) para minha endividada pessoa. Salvo surtos eventuais, alguns deles assustadores, tenho vencido.

Dado o contexto, chega a ser engraçado viver, por duas semanas, na ilusão de que poderia levar tudo o que vejo nas vitrines, mas que não o faço por obrigação profissional. Engraçado e chique.

Já das miudezas e pechinchas, sinto falta. Na impossibilidade de debelar meu consumismo, foi para elas que desviei o ímpeto. Como medida de controle de danos, não é ruim; às vezes, gastar R$ 0,25 em um carretel de linha de uma cor inspiradora pode ser suficiente para me mandar para casa feliz. Só de pensar que vou descer a pé a rua Teodoro Sampaio já me animo; mas lembro do serviço e meu coração afunda.

CRISE DE ABSTINÊNCIA

Um dia, chove inesperadamente e lamento não poder usar o pretexto para comprar uma sombrinha chinesa, mania inocente que me permito. Sim, elas se desintegram logo, mas custam R$ 7 e sempre há uma engraçadinha.

No outro, a caminho de um compromisso, passo por uma ponta de estoque que só por milagre poderia ter algo a oferecer e entro assim mesmo. Acho que nunca vou abrir mão do prazer idiota de examinar umas araras para adiar o batente -por cinco minutos que sejam.

Na segunda semana, começo a achar a vida meio parecida com o Second Life, aquele ambiente virtual onde você ficava comprando coisas para definir seu personagem. A digressão pseudofilosófica deve ser sintoma da síndrome de abstinência.

Outro: ao andar por uma rua crivada de tentações, de repente me engraço por tudo, incluindo coisas sobre as quais não tenho opinião formada. Decido: no primeiro dia livre dessa incumbência, volto para comprar a sandália anabela com salto de corda e o chapéu com fator UV.

Chega um sábado e, alegria, tenho que ir à feira. Meio confusa depois de tanta contenção, compro cenouras orgânicas em duas bancas e arremato mudas de erva-cidreira que, de fato, não são para comer. Na saída, quase caio na tentação de entrar na tenda de uma taróloga.

No caminho para casa, um ambulante no farol oferece uma raquete de fritar mosquitos. Lembro que a nossa pifou. A próxima coisa que sei é que a raquete está no banco traseiro, e eu falhei -de novo.

HÁBITO OU VÍCIO?

Começo a desconfiar do meu cérebro. Quando ele me enganou assim antes? O que é isso que se imiscui na vida, contra todas as deliberações em contrário? Que quando você vê, já fez? Lembro que isso se chama vício, ou hábito se você preferir um eufemismo. Lembro-me do que tive de entender para parar de fumar e vejo que tudo se aplica. Em especial, o fato de que um cérebro dependente de determinado estímulo fará de tudo para obtê-lo.

A recorrência exaustiva do impulso de comprar lembra muito o desejo de fumar de quem larga o cigarro. Não passa uma hora livre em que não me ocorra entrar numa farmácia, não ando um quarteirão sem me deter diante de uma vitrine, não vejo uma papelaria sem vasculhar uma lista mental de itens faltantes.

Mas eis que, assim como no caso do cigarro, resistir compensa. É o que percebo ao me colocar, de propósito, em situações-limite, como um magazine sortido na rua 25 de Março e uma Americanas Express, em Pinheiros (não, o Shopping JK não faria o truque; quando entro lá, minha cabeça se ajusta para o "modo museu", um estado contemplativo e desprovido de intenção de compra).

Já em lojas populares, me jogo. Na primeira, me interesso por sianinhas douradas, dúzias de isqueiros Bic (foram-se os cigarros, mas eles ficaram) e uma caixa de Lenços Presidente. Na segunda, há o DVD de "Bob Esponja - O Filme" (R$ 14,90), um clássico, e um conjunto baratíssimo de copos da Nadir Figueiredo. Mas aí você não compra e, ao pisar de volta na calçada, se dá conta de que nada daquilo faria diferença na vida. Ou quase nada.

Deve ser por isso que sites especializados em aconselhar consumistas compulsivos, como o americano "My Year Without Clothes Shopping", preconizam o jejum como ponto de partida para a mudança de hábito (veja à pág. 6).

Comprar é divertido e comprometedor, como todo vício, mas é mais difícil de combater do que a média. Não só não consideramos nosso hábito de consumo excessivo como agimos como se estivéssemos aqui para isso.

Lapsos à parte, o que o período de privação me mostrou é que parar é ter de prestar atenção. Isso é um começo para quem quer deter a compulsão. Se não para ajudar o Banco Central a conter a inflação, pelo menos para economizar seu dinheirinho. E, quem sabe, abrir espaço para outras experiências.

Já posso voltar à Teodoro para comprar meus copinhos?


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