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Longe da Copa

Japoneses da terra do ovo, de olho no judô e no beisebol, negam-se a dar uma forcinha a Felipão & cia.

ROBERTO DE OLIVEIRA KARIME XAVIER ENVIADOS ESPECIAIS A BASTOS (SP)

Nas pontas dos pés, 63 crianças e adolescentes tomam lugares e se dividem em duas filas, uma de frente para a outra, sobre o tatame.

Uma voz ecoa pelos 80 m² do ginásio: "Kiotsuke' [sentido']". É Uichiro Umakakeba, 68, anunciando num megafone a mesma ordem de comando adotada pelo Exército japonês. "Rei' [cumprimentar']", prossegue, num ritual que se repete seis vezes por semana. "É quase como uma religião, que trabalha o caráter e a disciplina", enfatiza o professor de judô.

Disciplina essa que seguirá à risca mesmo durante os jogos da Copa --os japoneses enfrentam neste sábado (14) a Costa do Marfim. "Aqui, o esporte número 1 é o judô."

Os ideogramas de seu quimono se multiplicam pela arquibancada do ginásio, pelo comércio e pelas fachadas de igrejas, até das evangélicas.

Prosas e cantos em japonês, trajes típicos, tudo ali remete à terra do sol nascente. Com 50 m de comprimento por 12 m de largura, o tatame verde-amarelo, no qual o professor e seus discípulos de olhinhos puxados (ou não) se exercitam, porém, revela: trata-se de solo brasileiro.

A 536 km de São Paulo, Bastos é conhecida, sobretudo, como a capital nacional do ovo (no tempo que você levou para chegar a esta parte do texto, as galinhas de lá já botaram mais de 16 mil ovos). É uma das mais tradicionais colônias japonesas do país. Se indagarem por ali quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha, os moradores não hesitarão em apontar o primeiro como resposta, assim como terão as palavras na ponta da língua quando lhe perguntarem quem é o maior judoca da cidade ou o melhor arremessador de beisebol.

A propósito: apesar da profusão de nomes e sobrenomes japoneses em Bastos, lá não há nenhum parente, ainda que longínquo, de Yuichi Nishimura, juiz que apitou aquele "pênalti-mandrake" a favor do Brasil e, com isso, nos deu uma forcinha na vitória de 3 a 1 contra a Croácia, na quinta (12), no Itaquerão.

CAMINHO DOS SÚDITOS

Nipônica até os dentes, Bastos foi nos anos 40 uma das bases da Shindo Renmei, Liga do Caminho dos Súditos, grupo destinado a unificar a colônia em torno do espírito japonês ("yamatodashi").

Como não aceitava a derrota do Japão na Segunda Guerra, a Shindo falsificava de revistas a manifestos imperiais para provar que o país continuava na batalha.

Enquanto isso, os imigrantes da colônia conscientes da derrota japonesa eram tratados como traidores, que deveriam morrer para "lavar a honra da pátria". Eram os "corações sujos". Contada por Fernando Morais, essa história virou best-seller.

A primeira vítima da Shindo no Brasil foi Ikuta Mizobe, presidente da Cooperativa Agrícola de Bastos, assassinado em 7 de março de 1946.

Hoje, os cerca de 20 mil habitantes, a maioria descendentes de japoneses, nutre outro tipo de devoção à remota "pátria": judô, caraoquê, taikô (tambor), beisebol...

Os mais velhos (muitos deles nem falam português) vivem em sintonia com o Japão pelo canal pago de TV NHK.

"Antes de dormir, gosto de acompanhar os campeonatos de sumô", conta o avicultor Katsuhide Maki, 68, que também preside a Acenba (Associação Cultural e Esportiva Nikkey de Bastos). As partidas da Copa estão fora de sua programação. "Se for torcer por alguém, será para o país de meus antepassados. Muita coisa errada no Brasil."

Já nos dois campos de beisebol tudo está ordenado: de um lado, um grupo de crianças; do outro, adolescentes. No Bastos Beisebol Clube, não há tolerância para a indisciplina. Quem chega atrasado leva castigo: vai logo dar uma voltinha no estádio.

"Quer fazer parte da equipe? Não pode faltar com boas maneiras", avisa Arthur Massatoshi Asanome, 64 anos, 25 dos quais dedicados a treinar equipes --a de Bastos existe desde 1930, dois anos depois de a cidade ser fundada; foi de lá que saiu Luiz Gohara, do Seattle Mariners (EUA).

Sobre a Copa, diz: "Futebol virou esporte elitizado". E o beisebol? "Não é diferente". Bolas, luvas e tacos são importados. "Sobrevivemos graças a voluntários, pais de atletas e avicultores", diz.

Treinador das categorias infantil e júnior, Daniel Zaha, 28, já defendeu o Brasil em países como EUA e Argentina. Conta que a participação de brasileiros cresce nas equipes. "Há 25 anos, de cada 9 jogadores, 7 eram filhos de japoneses. Hoje, são 3."

Algumas expressões do treino e os cumprimentos, contudo, continuam sendo proferidos na língua "oficial". Como explica o monge budista Hiroshi Matsuda, 74, num português pra lá de esforçado, "há coisas que só podem mesmo ser ditas em japonês".


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