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Atriz que vive poeta teve medo de expor 'alguém tão contida'
'Gostei do erotismo das cenas, mas não queria que ficassem provocativas', diz a australiana Miranda Otto
Filme de Barreto mostra alcoolismo de Bishop; diretor diz que foco não é o homossexualismo, mas a história de amor
Discreta, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop não gostava de falar em público. A autora, que viveu de 1951 até o final da década de 1960 no Brasil, tampouco tinha coragem de recitar seus poemas. Acabou tendo a vida exposta no cinema.
"Flores Raras", longa do diretor brasileiro Bruno Barreto que estreia hoje, retrata detalhes da vida íntima da poeta, como seu problema com o alcoolismo e seu relacionamento com a urbanista e paisagista brasileira Lota de Macedo Soares (1910-1967), interpretada pela atriz brasileira Glória Pires.
"Tive medo de expor demais a vida de alguém que era extremamente contida", diz Miranda Otto, atriz australiana que fez o papel de Bishop.
Segundo Barreto, o filme não é centrado no relacionamento homossexual, mas simplesmente retrata uma história de amor. "O tema das duas mulheres está presente, mas não é a razão de ser da história", diz o diretor.
"Gostei do erotismo das cenas [entre Bishop e Lota], mas não queria que ficassem provocativas. O relacionamento de Bishop com a poesia era maior que seu relacionamento com Lota", afirma Otto.
MASCULINA FEMININA
As cenas de amor e de brigas entre as duas se alternam com momentos que mostram o processo criativo de Bishop e o trabalho de Lota no parque do Flamengo, no Rio. Autodidata, a paisagista ficou conhecida por dirigir os trabalhos de projeção do aterro urbano, o maior do mundo.
"Lota era uma mulher extremamente masculinizada, mas feminina nos seus gostos. Enquanto trabalhava no aterro do Flamengo, fazia questão de almoçar com talheres de prata e porcelana inglesa", diz Glória Pires.
Bishop, por sua vez, era mais conhecida pelo perfeccionismo em relação ao seu trabalho. Ela contou, em entrevista à "Paris Review", em 1978, que nunca gostou do poema "O Alce", mesmo tendo levado mais de 20 anos para terminá-lo, em 1976.
O filme demorou quase isso para sair do papel. Foi em 1997 que a produtora Lucy Barreto, mãe do diretor, comprou os direitos do livro "Flores Raras e Banalíssimas "" A História de Lota de M. Soares e Elizabeth Bishop", de Carmen Lucia Oliveira, no qual o longa é baseado. Lucy chegou a conhecer Bishop e Lota em alguns encontros sociais nos anos 1960.
O livro só menciona o primeiro encontro entre Bishop e Lota, em 1942, ocorrido em Nova York, quando a paisagista fora à cidade na companhia de Mary Morse.
O foco é mesmo no relacionamento iniciado dez anos depois, no Brasil, para onde a poeta veio em 1951, disposta a ficar por período curto.
Em entrevistas, publicadas no livro "Conversas com Elizabeth Bishop", a autora gostava de contar que a sua estada no Rio se prolongara porque ela teve de ser internada em um hospital, em consequência de uma reação alérgica a um caju, cena que está no filme.
Depois disso, Bishop se envolveu em um triângulo amoroso com Mary Morse e Lota--as duas já moravam juntas em Petrópolis, região serrana do Rio. A casa em que viviam, projetada pelo arquiteto brasileiro Sérgio Bernardes, passou a ser também o lar de Bishop.
Durante sua estada no Brasil, Bishop chegou a ganhar um Pulitzer com o livro "Norte & Sul - Uma Primavera Fria", em 1956. Quando soube do prêmio, quis compartilhar a notícia, mas Lota havia ido à feira. Procurou alguém para dividir a alegria.
"Desci a montanha correndo quase um quilômetro até a casa vizinha, mas não tinha ninguém", relatou na entrevista à "Paris Review". No filme, porém, é Lota quem lhe dá a boa notícia.
Em 1965, Bishop comprou uma casa em Ouro Preto, onde conviveu com Vinicius de Moraes e com a dinamarquesa Lili Correia de Araújo. "Alguma coisa no caráter dessa cidade combina comigo", disse, em 1969, à revista "Visão".
Mas, em geral, Bishop era uma crítica da desorganização do Brasil. Também dizia não entender o caráter pacato do povo. Em uma cena, ela comenta a passividade diante do golpe militar de 1964.
Bishop voltou aos EUA onde, em 1967, recebeu uma visita de Lota. Final trágico: a paisagista ingeriu antidepressivos na casa da poeta e morreu.