Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria
Peça de Tchékhov utiliza 200 km de fios no cenário
Em 'O Jardim das Cerejeiras', cordões simbolizam complexidade do texto
Atores interpretam um mesmo papel e trocam de personagens para reforçar conflitos de classes na Rússia
Duzentos quilômetros de fios revestem o teatro do Sesc Bom Retiro. Dispostos com pequenos espaços entre si, nas laterais e no fundo do palco, são o cenário de "O Jardim das Cerejeiras", peça que estreou no último sábado.
Os fios simbolizam as diversas camadas que o dramaturgo russo Anton Tchékhov (1860-1904) imprimiu nos personagens de sua obra, considerada fundamental sobretudo por iluminar a complexidade do homem.
"Busquei enfatizar o impressionismo de Tchékhov. Embora seja considerado realista, ele escapa desta linguagem. Sua obra tem lirismo, e seus personagens, espaços internos vastos", diz Marcelo Lazzaratto, diretor da premiada Cia. Elevador de Teatro Panorâmico.
O encenador interfere de forma poética nesse texto sobre o declínio de uma família aristocrática em meio às mudanças do início do século 20. Usa o corredor de fios como "campo de latência, da possibilidade do vir a ser", diz.
O cerejal do título simboliza a Rússia. As diferentes percepções dos personagens sobre essa terra sintetizam as divergências de classes.
Para a aristocrática Liuba, dona do jardim cuja terra vai a leilão para o pagamento de suas dívidas, as cerejeiras representam poder e beleza.
Para o comerciante Lopakhin, as cerejeiras não possuem atributo nenhum. Apenas o local onde se encontram tem valor, o qual, segundo sua visão, deve ser loteado para a construção de chalés de veraneio.
Na busca por retratar a vastidão do homem, Lazzaratto também escala mais de um ator para interpretar um mesmo personagem. No caso de Firs, o empregado idoso da família, vai ainda mais longe. Todo o elenco vive Firs.
"A ideia é reforçar camadas e contradições, tornando personagens mais grossos e largos", explica Lazzaratto.
Na última cena, a atriz Carolina Fabri, a mesma que vive Liuba, interpreta o serviçal Firs. A sobreposição de extremos em um só corpo evidencia a dimensão filosófica da peça, materializando as transformações da vida.