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Michel Laub

Artificialmente natural

Como a arte, a vida não consegue ser 100% natural; o ser humano representa o tempo todo

Numa cena conhecida de "Pulp Fiction", de Quentin Tarantino, e numa tradução palatável para quem foi à recente marcha pela família, há um personagem que diz a outro, anunciando a vingança depois de uma briga um tanto peculiar: "Serei medieval em seu traseiro".

Tarantino é considerado um mestre dos diálogos. A fama é endossada por espectadores do mundo todo, eu inclusive. Sempre lembro desse exemplo quando criticam personagens de um filme brasileiro com o argumento de que "ninguém fala daquele jeito".

Não que nossa produção audiovisual seja inocente. Sou de uma geração que acompanhou as ambições estéticas (chamemos assim) da Embrafilme e da pornochanchada. No segundo caso, as madrugadas do Canal Brasil comprovam: como levar a sério a dublagem daqueles capitalistas de charuto, de suas esposas interessadas no jardineiro e no limpador de piscina, tudo como possível metáfora moral do governo Geisel ou Figueiredo?

Só que o cinema brasileiro mudou, e fico pensando se suas falas hoje são menos naturais que "serei medieval em seu traseiro". Se nossa menor familiaridade com os elementos da cena tarantinesca-- a língua, em especial-- não causa uma espécie de boa vontade ignorante, insuflada por anos de costume com os diálogos espertos de Hollywood.

A diferença de recepção vale para outras cinematografias. As legendas de filmes asiáticos costumam trazer frases curtas e algo simplórias, que parecem tornar difícil a comunicação entre os personagens, e não sabemos se esta é uma característica cultural do país em questão ou erro/desleixo/impossibilidade de fazer melhor por parte do tradutor.

Já em Pedro Almodóvar, às vezes, a dúvida é se o sinal duplo que algumas falas transmitem --entre a seriedade emocionada e o escracho-- deve-se a um tom intencional, o kitsch que o cineasta gosta de cultivar, ou ao ouvido de quem associa a língua espanhola a esse registro/clichê.

De qualquer modo, soar verossímil não é sinônimo de ser realista. Hollywood mesmo parece fazer uma imitação reverente da realidade, mas não faz: quem de nós desliga o telefone sem dar tchau, como é comum nos filmes americanos, depois de um diálogo em que são transmitidas informações técnicas nunca repetidas e conferidas, ou acredita que vilões fariam longos discursos antes de (não) matar o mocinho?

O que a dramaturgia faz é propor um contrato, a "suspensão voluntária da descrença" (Coleridge), e no início de uma obra aceitamos ou não que o universo apresentado pelo artista pode ser daquela maneira. É um contrato que prevê autonomia, não submissão ao já sabido.

Uma cena não poderia "acontecer assim"? Só até o dia em que, numa narrativa que a justifique, ela acontece.

No caso dos diálogos, entra um fator pouco mencionado: o ouvido é menos objetivo do que parece, mesmo em nosso idioma. É comum estranharmos não apenas o vocabulário, mas a sintaxe --e, por consequência, a naturalidade-- de quem supostamente usa os mesmos códigos que nós. Ouçam o Paulo Francis falando. Ouçam o Thunderbird. Ouçam o Sérgio Mallandro. Ouçam o Brizola.

É difícil acreditar que a performance de tais figuras --não estou falando só de sotaque-- saia espontaneamente. Como a arte, a vida não consegue ser 100% natural. O ser humano representa o tempo todo, para os outros e para si mesmo. Citamos frases alheias de forma literal ou irônica. Emulamos o modo de ser de personagens ficcionais.

Isso porque não queremos soar típicos (uma forma menor de verossimilhança). Queremos soar interessantes. Quando o capitão Nascimento diz "o senhor é um fanfarrão", ecoando a solenidade falsa do jargão militar, e Zé Pequeno grita "porra!", ecoando o que Paulo César Pereio ecoou décadas atrás --foi a glória de um tempo, reconheço--, a pergunta não é se alguém do Bope ou da Cidade de Deus naquele ano, sob aquelas circunstâncias, usaria aqueles termos e aquele tom.

Não temos como adivinhar isso mascando Trident em nossas poltronas de shopping.

A pergunta é se o personagem é carismático o suficiente para tornar sem efeito os ruídos em sua voz. Quando o erro é bom, vira acerto. O resto, como qualquer macaco falante sabe, é apenas cópia.


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